segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Ver019



Agora eu mesmo estava terminando o copo d'água que Catharina tinha deixado pela metade. Pensar que Carol estava dançando em algum teatro chique de Paris mais de cem anos atrás ainda era alguma coisa difícil de conceber. Catharina continuou:

- Era visível. Carlos não conseguia esconder mesmo se quisesse. Acabei conhecendo Carolina antes de realmente conhecê-la tamanha era a freqüência que Carlos trazia seu nome para as conversas. Trabalhávamos nas manhãs tentando juntar pistas do paradeiro de Malta. Ele voltou para ver o espetáculo mais duas vezes, a falta de atenção dele durante o dia não me incomodava tanto no início, mas aí eu percebi que a distração não era Paris, mas sim Carolina.

Tive vontade se perguntar como havia se dado o primeiro encontro dos dois, mas Catharina como se soubesse da minha curiosidade disse:

- Eu vou contar sobre como eles se aproximaram logo, mas antes é preciso falar um pouco mais de Carolina. - as mãos tocaram as leves marcas que os dedos de Carol tinham feito na sua pele - A família LeBion tinha sido uma das primeiras famílias francesas à imigrar para o Brasil. Já estavam no país há alguns anos quando resolveram se mudar para o Rio de Janeiro quando Família Real Portuguesa se refugiou dos ataques de Napoleão Bonaparte e fincaram raízes na cidade. Após três gerações aqui Jean-Baptiste LeBion (que coincidentemente era pintor como seu homônimo Debret) se casou com Juliana Lopes, a única filha de uma rica família da aristocracia carioca. Dessa união nasceu Carolina. 
- Mas como ela foi do Rio para a França? - perguntei ávido por informações.

Catharina ficava realmente sem paciência quando era interrompida num assunto que julgava ser importante. Olhou para mim e a placidez dos seus olhos me dizia para ficar calado. Respirou, seguiu:

- Vou chegar lá se você permitir, Pablo. Carolina LeBion cresceu numa família bastante abastada e com forte carga cultural. A mãe, você não me deixou terminar, teve três livros publicados e acredite, isso era muita coisa para a época. Não era de se esperar que Carolina tivesse um lado artístico mais desenvolvido que a maioria também, mas seus talentos não se focavam na pintura ou na escrita - apesar de ela ter publicado um livro de poemas no último ano da escola regular - sua verdadeira paixão era o ballet. Desde os cinco anos frequentou a melhor academia de ballet da cidade e permaneceu nela até completar dezoito anos. Seu pai já havia falecido quando ela chegou à maioridade e ela contou à sua mãe que tinha desejos de continuar os estudos de dança na Europa quando terminasse a escola. O desejo já era antigo, se dependesse de Carolina ela teria feito todo o ensino médio na França. A mãe, que era muito superprotetora, rebateu seu argumento dizendo que ela poderia continuar estudando aqui no Brasil mas a verdade era que as academias e palcos brasileiros eram muito aquém dos europeus naquela época. Nem o Theatro Municipal existia ainda.

Catharina levantou da mesa e pôs as mãos nos meus ombros com uma expressão séria.

- Pablo, por favor agora preste atenção porque essa é a parte da história que eu julguei importante que você soubesse. Carolina é perigosa, e se você precisasse de mais alguma prova vou lhe dar agora. 

Eu conseguia sentir a tensão de Catharina e isso me deixou bastante desconfortável também. Deu certo, ela tinha toda a minha atenção.

- Quando fez dezoito anos já não precisava mais do aval da mãe e como dinheiro não era problema no dia depois do seu aniversário Carolina já estava num navio com destino final sendo Paris. Em 1883 era bastante incomum ver uma mulher como Carolina viajando sozinha mas tenho que admitir que ela sempre teve personalidade. Preciso lembrar que tudo que eu estou te contando até agora soube pelos comentários que Carlos me fazia então desculpe pela falta de detalhes. Carolina nunca foi afeita à vida de muito materialismo que sempre foi acostumada, teve muitos pretendentes em casamentos arranjados pela família e negou todos. Por isso, eu acho, rapidamente fez amizade e contatos com os artistas de Montmartre e não demorou muito para começar a dançar com as bailarinas francesas. 

Sentou de novo, mas o olhar sério continuava

- Naquele dia Carlos foi ao teatro e esperou ela na saída como fez das outras duas vezes também. Carlos a convidou para um café. Ela negou prontamente mas disse que adoraria uma taça de bordeaux, ou duas. Entenda, a época era outra, mas Carolina LeBion era a mesma. É normal que pense que este efeito que ela causa em você é algo que veio após sua transformação, mas a verdade é que Carolina sempre conseguiu o que queria dos homens.
- Efeito? Não sei do que você está falando.

Catharina se limitou a me encarar com o rosto em expressão e isso me deixou envergonhado, não sabia que era tão óbvio assim.

- Como disse, ela e o resto da companhia moraram em Montmartre, aquele antro de perdição. Carolina, criada numa família católica e de posses, foi se sentir à vontade no meio de casas de baixo meretrício e bares sujos. Nunca realmente entendi como o lugar atraía a maior parte das mentes artísticas da época. Enfim, Carolina levou Carlos ao seu apartamento que ficava em um sobrado na rua principal do bairro. Lá eles beberam mais do que duas taças de vinho, Carlos não usava nada que mostrasse sua filiação ao Vaticano mas as coisa foram esquentando entre eles e ele foi obrigado à falar. Ele me contou que Carolina ficou bastante interessada no seu jeito tímido e envergonhado e não precisou mais do que duas horas para os dois ficarem bem…próximos. Carlos era bem dedicado ao ofício, Pablo, ele levava à sério os valores da ordem e, como ela lhe disse lá no quarto, o celibato é um deles. Carlos pecou naquela noite.

Pensar em outro homem tocando os lábios de Carol, ou passando as mãos pelo seu corpo me causou um desconforto agudo. Tecnicamente aquilo não fazia muito sentido, afinal tinha acontecido mais de cem anos atrás, mas quem disse que nossas emoções sempre são coerentes, certo?

- Catharina, - eu disse tentando disfarçar o quanto aquela última parte da história me agredia - podemos ir direto ao ponto? Até agora não entendi ainda o motivo de você estar me contando tudo isso.
- Eu ia dizendo que Carlos foi criado e respeitava bastante os moldes da igreja então não é difícil pensar que ele nunca tivesse estado com uma mulher antes. 

Dava para ver que me contar aquilo era muito difícil para Catharina. Agora eu ia entendendo, era culpa que eu sentia ali. Ela se culpava por ter “perdido” esse tal Carlos. Sua missão era protegê-lo e ela se sentia mal por ter sido desleixada com ele. Comecei a entender o motivo da sua reação tão desmedida quando me viu com Carol.

- Carlos me disse que contou para ela. Contou, mas ela não deu importância. - Catharina estava perdida nos próprios pensamentos agora, eu poderia sair da sala e ela não perceberia - É o tipo de mulher que não respeita nem mesmo um homem casado com Deus. Carolina tirou a virgindade de Carlos e seu foco de nossa missão também. Ele não voltou para Notre Dame naquela noite, fiquei preocupada e saí pela cidade após algumas horas de seu sumiço. Pela manha eu retornei e o sumo-sacerdo disse que ele havia retornado e estava descansando. Passei pelo salão aonde os outros membros da Ordem faziam o desejum e cheguei ao quarto aonde estávamos hospedados. Carlos dormia irresponsavelmente, e eu o acordei sem nenhuma cerimônia, confesso. Naquele dia deveríamos sair cedo porque havíamos recebido uma pista confiável de outro sacerdo de que Malta estaria se abrigando num apartamento no Boulevard Saint-Michel. Tinha dúvidas sobre aonde ele havia ido, mas preferi apenas apressá-lo para sairmos logo. Qualquer dúvida poderia ser esclarecida mais tarde.

Lembro do jeito que Catharina olhava para mim agora, como se o que eu fiz tivesse sido uma falta irreparável, algo para se envergonhar. E se não tivesse sido com Carol talvez eu tivesse me envergonhado mesmo.

- Ele estava quieto durante todo o caminho margeando o Sena até acharmos o endereço que nos foi dado. Encontramos o apartamento vazio, mas com sinais de uso recente. Talvez não fosse o melhor lugar para termos aquela conversa mas eu estava bastante apreensiva, perguntei aonde ele tinha passado a noite anterior e Carlos me contou com detalhes desnecessários o que ele e Carolina tinham feito. Acabamos brigando, nossa primeira briga em anos e ele saiu de lá de cabeça quente. Não nos entendemos mais, os encontros com Carolina se tornaram frequentes, quase diários, e ele já não fazia mais questão de esconder. Carlos tinha posto nosso objetivo de lado, dizia que saía todas as manhãs para tentar cobrir o rastro do assassino mas eu sabia que não era verdade.  Cansada daquilo, resolvi tomar uma atitude. Conheci Carolina em numa noite nos arredores de uma outra grande igreja da cidade, a basílica de Sacré Coeur. Marquei um encontro definitivo com Carlos para acertarmos os assuntos pendentes. Àquela altura ele passava mais tempo no apartamento dela do que na sede da ordem mesmo. Nosso encontro foi breve, numa mureta no alto da escadaria que dava para a basílica. Quando cheguei encontrei eles aos beijos, ela estava sentada no colo dele e duas garrafas de bordeaux jaziam vazias no chão. Carlos, mesmo um pouco embriagado, nos apresentou cordialmente. Carolina não era muito diferente do que você conhece, quer dizer as roupas e o cabelo ruivo seguiam a moda da época apesar de que ela nunca foi muito convencional. Pedi um momento com Carlos, ela levantou e desceu com as garrafas vazias. Não sem antes beijar seus lábios calorosamente. Sentei ao lado dele que estava visivelmente embaraçado com o volume que havia entre suas pernas mesmo eu não tendo dito nada. Eu queria ir direto ao ponto mas, pouco depois de Carolina descer as escadarias e voltar para a sua casa, eu e Carlos sentimos uma forte presença bem perto.

Eu ouvia à tudo aquilo mudo.

- Não durou mais que um segundo. Sentimos nitidamente alguém bem perto e um momento de silêncio apreensivo se deu. Aguardamos, mas logo a manifestação passou…ou se escondeu. - a voz voltou a embargar - Ele me disse que deveria ter sido só impressão, eu concordei e comecei a conversa que fui ter com ele desde o início. Fomos francos. Perguntei o que estava havendo, qual era o motivo de todo aquele descaso com a nossa perseguição. Carlos hesitou antes de responder mas quando disse, falou de uma vez. Me confessou que tinha descoberto uma outra vida nestas duas semanas que estivemos na França, que Carolina o fez repensar suas prioridades e que já não queria mais a responsabilidade que o ofício sagrado lhe conferia. Não era como se eu já não suspeitasse disso, mas me magoou muito ouvir as palavras saindo de sua boca. Tentei convencê-lo, dizer que Carolina estava com ele hoje, mas amanha poderia estar com algum escritor ou músico do Moulin Rouge. Eu tentei abrir os olhos dele, o trabalho de uma vida não poderia ser jogado fora por alguma irresponsabilidade libidinosa. Dei muitos motivos, ele me rebateu com um único. Disse que a amava.

Novamente, pensar em outro declamando seu amor por Carol fazia meu estômago revirar e meus punhos se fecharem.

- E contra o amor, mesmo um amor que eu julgava ilusório e precipitado, eu não tive argumentos. Carlos era muito bom detectando emoções alheias e percebeu a minha melancolia, já não havia mais motivos para brigar. Eu tinha perdido meu único amigo. Ele disse que foi bom eu ter marcado este encontro, ele também tinha algo à dizer. Seus olhos, castanhos como os seus, focaram nos meus e ele me contou que aquela seria sua última madrugada em Paris. Eu precisei sentar. Ele continuou me dizendo que contou tudo, ou quase tudo, para Carolina disse também que precisaria fugir para sair da vida de compromissos que tinha. Aparentemente ela era tão inconsequente quanto ele porque tinha aceitado. Aquilo que eles faziam em frente à basílica era uma celebração, uma espécie de casamento improvisado e particular. Me disse que seu trem sairia as 22h para Londres e depois de lá não sabia de si. Iria passar em Notre Dame de novo para reunir as roupas que tinha trazido e pretendia sair sem comunicar à nenhum outro membro, mas não queria sair sem se despedir de mim. Fizemos então nossa despedida e foi inevitável não me emocionar - Catharina agora chorava - ainda hoje eu me emociono lembrando. Perguntei como era seu plano, se ele precisaria de alguma ajuda e ele disse que não. Carolina estaria agora mesmo finalizando as malas e ele se encontraria com ela às 21h no do próximo dia na Rue de Compiègne e de lá seguiriam juntos para a estação e para o resto de suas vidas.

Catharina precisou de um momento para se recompor, limpou as lágrimas com leveza e era estranho perceber que, mesmo chorando ela ainda era muito bonita. Quando voltou a falar sua voz era mais forte, mas sua expressão não.


- Eles nunca conseguiram chegar à estação. Mais alguém tinha ouvido o plano naquela noite nos arredores da basílica de Sacré Coeur.

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