sábado, 20 de dezembro de 2014

Ver018



Eu já sabia que Catharina estava chateada comigo. Mesmo sabendo disso não esperava uma reação tão explosiva da parte dela. Quando abriu a porta, Catharina viu Carol entre nós e a surpresa ficou evidente nos seus olhos, mas essa surpresa só durou uma fração de segundo porque pouco depois ela fez o que parecia ter sido programada para fazer. Me proteger.

Eu não consegui ver, só senti um leve empurrão de volta para a minha cama e de súbito Catharina se pôs no meio de nós. Neste ínfimo momento Carol tomou posição de ataque, seus olhos fuzilavam Catharina e suas presas estavam à mostra. Levantei para dizer à Catharina que fui eu quem tinha deixado Carol entrar, mas ela não me ouviu e me empurrou para a cama novamente.

Eu conseguia sentir a energia nas duas cada vez mais agressiva, como pólos opostos que se atraíam cada vez com mais força. Se elas realmente resolvessem brigar ali não ia sobrar muita coisa.

- O que você está fazendo aqui!? - Catharina tinha ódio na voz.
- Ah, não se faça de desentendida, Catharina. - Carol pingava ironia - Você sabe muito bem o que eu vim fazer aqui.
- Eu não vou deixar você tocar nele, upyr.
- Bom, acho que você chegou um pouco tarde então. - ela deu um sorriso sarcástico e olhou para mim de um jeito tão intenso que me fez corar apesar de eu ser moreno. Catharina, que permanecia de costas para mim disse:

- Escute com atenção, Carolina. Eu não sei como você entrou aqui mas...
- Eu chamei. Precisava falar com ela, esses - eu disse inseguro - são os restos do ritual de invocação que eu tentei fazer. 

Apontei para os restos de velas e para o desenho no assoalho. Catharina me olhava incrédula. Eu conseguia perceber, pouco a pouco, a decepção ir diminuindo aquela energia que, antes eu tinha sentido tão intensa. Ela abriu a boca mas não encontrou as palavras, Carol falou no lugar dela:

- Ele é mesmo uma gracinha, não é? É verdade que ele tentou me chamar, mas eu já estava aqui antes mesmo de ele começar a rabiscar no chão. - Catharina parecia não dar atenção para a inimiga. Agora ela encontrou palavras:

- Pablo, eu não acredito. Depois de tudo que eu te contei sobre a raça dela, depois do que eles fizeram com seu pai. Como você pôde invocar ela aqui, para dentro do seu próprio quarto?!
- Você sabe o motivo tanto quanto eu, Catharina! Pare de se enganar! E eu acho que, lá no fundo, ele deve saber também! - Carol estava impaciente agora, sua aura ia engolindo a de Catharina.
- Ele não é mais quem você pensa, demônio! - Catharina voltou a expandir, novamente eu conseguia ver aquele véu branco que ela fez para me proteger uma vez. Vi seus olhos perdendo a íris e os móveis do meu quarto começavam a tremer. Ela me deu as costas, sua atenção era toda para Carol agora.

Carolina não ficou atrás. Os olhos, aqueles olhos assassinos, tinham achado sua presa. Era intimidador ver Carol daquele jeito, ela parecia fora de si, como um animal seguindo um extinto. Matar. Carol avançou sem cerimônia, se jogou contra Catharina com toda a força. Minha Favrashi não foi capaz formar um escudo forte o bastante e e acabou sendo arremessada contra a parede.

Agora eu via as luzes dos vizinhos começarem a se acender.

As mãos delicadas de Carol apertavam o rosto de Catharina, suas unhas negras iam se fincando nas bochechas rosadas a oponente. Anjos não sangram e isso foi uma sorte, não sei o que teria acontecido com uma só gota de sangue ali. Temo que o pior

- CAROL, PARA! - Disse com uma autoridade que até mesmo me surpreendeu.

Não esperava, mas ela me atendeu. Como se voltasse a si, quase no mesmo instante da minha, fala ela parou o ataque. As coisas no quarto pararam de tremer, a atmosfera foi ficando menos densa.

- Viu? - ela disse soltando a vítima - Ele ainda é e-xa-ta-men-te quem eu estava pensando.

Catharina caiu e Carol veio em minha direção. Ajeitando os cabelos e o vestido, os olhos voltando ao preto intenso cravados em mim. Ela parou na minha frente e pôs as mãos de gelo no meu rosto.

- Você queria saber porque eu vim aqui hoje, não é? Foi por isso aqui.

Seus braços se cruzaram no meu pescoço de forma suave, mas me trouxeram para ela com urgência. Meus lábios procuraram os dela como se já conhecessem o caminho. Seu hálito era fresco e sua boca era fria, mas isso só me excitava mais. Enquanto nossas línguas se entrelaçavam eu sentia seus caninos protuberantes e ela os usava para me dar leves mordiscadas nos lábios. Minhas mãos começaram na sua cintura, bem nas marcas abertas do vestido, mas conforme o beijo esquentava um dos braços passou pela cintura trazendo ela para mais perto ainda de mim enquanto o outro ia até o seu pescoço. As dela se descruzaram e, com a esquerda, ela enroscou os dedos entre os cachos da minha nuca.

Não saberia dizer quanto tempo durou o beijo, só que não foi suficiente para mim. Eu queria mais, apesar de que, quando acabamos eu estava ofegante, como se estivesse acabado de sair de uma piscina e precisasse de ar.

- Você continua ótimo, - ela tentava não parecer impressionada, o que me deixou um pouco orgulhoso - mas da próxima vez, lembra de que não precisa ficar na ponta dos pés.

Eu percebi que realmente me apoiava nos dedões. Talvez tenha sido a vontade de estender o tempo de beijo o máximo que eu conseguisse ou talvez tenha sido o impulso do meu braço na suas costas. Dei um sorriso tímido e olhei para baixo sem jeito. Ela veio, levantou o meu rosto selou os lábios nos meus de novo.

- Eu adoro quando você fica assim envergonhado. - suspirou - Tem muita coisa que você ainda precisa saber, mas a mais importante delas é que agora que nos encontramos, eu não vou perder você de novo. O resto - ela olhou por cima do meu ombro - sua amiga ali te conta. Acho que ela ainda consegue falar.

Eu tinha esquecido completamente que Catharina estava ali. Olhei para trás e vi que ela já havia se levantado e nos olhava com franca desaprovação. Voltei para Carol que se encaminhava novamente para a janela.

- Espera, você não precisa ir agora. - pareceu mais um pedido do que eu queria.
- Eu preciso, Pablo. Digamos que eu “fugi de casa” e as pessoas que moram comigo estão procurando por mim. Se eu ficar muito tempo num mesmo lugar eles podem sentir e vir atrás de mim. A última coisa que eu quero é um monte de vampiros aqui.
- Rá! Claro que sim. - Catharina falou com desdém, mas Carol ignorou o comentário e continuou olhando para mim.
- Ok, tudo bem. Mas onde eu posso encontrar você?
- Se eu te disser você vai vir atrás de mim. Não precisa disfarçar, eu sei que vai e por isso mesmo eu não vou dizer. Quanto menos risco você correr melhor. Mas ei, não fica assim - parece que a minha decepção era visível - eu vou voltar.
- Quando?
- Ah, um pouco de mistério nunca matou ninguém.

Ela sentou de novo no meu parapeito e, de novo, cruzou as pernas daquele jeito sob o vestido. Passou as mãos pelos cabelos e disse:

- Ah, é! Talvez você queira repensar aquela questão do celibato também.

Pulou para a noite escura e abafada. Corri para a janela e não a vi mais. Meu cérebro ficou algum tempo tentando registar o que tinha acabado de acontecer e me convencer de eu realmente tinha beijado a garota que figurava meus pensamentos na última semana. Catharina interrompeu meus devaneios. Esperava uma nova onda de hostilidade ou alguma reação agressiva mas não, ela estava estranhamente calma me olhou com um misto de carinho e piedade.

- Pablo, precisamos conversar.
- É, acho que precisamos. - eu ainda estava estranhando aquela bipolaridade toda.
- Mas não aqui, não aqui. Vamos para a sala.

Minha sala estava impecavelmente arrumada já que não era usada há dias. A mesa de jantar tinha sido limpa por Catharina mesmo e foi lá que nos sentamos. Ela não falou logo. Na verdade, houve um grande momento de silêncio onde nós só nos olhávamos. 

Ela pôs as mãos nas minhas e disse:

- Pablo, têm coisas sobre Carolina que eu não te contei.
- Aparentemente sim.
- Entenda, não era minha intenção omitir estes fatos de você se fosse realmente necessário que você soubesse. Eu não esperava que nessa cidade tão grande você fosse topar logo com ela.
- E qual seria o problema se nos encontrássemos? Ok, eu entendo que ela é um demônio perigoso você já recorreu à comentários bíblicos para provar isso. Mas não é só por isso, né?
- Pablo, eu preferia que você não soubesse disso desse jeito, mas você e Carolina já têm uma história pregressa. Peço que não me interrompa, tudo bem? - assenti com a cabeça e ela continuou

- No ano de 1883 eu já havia estado na maioria das partes deste mundo algumas vezes. Na época eu acompanhava um jovem Sacerdo, como eu faço agora com você. Talvez ele fosse um pouco mais centrado e menos inconsequente que você, mas vocês eram certamente bem...parecidos. O nome dele era Carlos. Não é preciso dizer que, naquele tempo, não havia tanta velocidade nos meios de registro e comunicação como há hoje, mas é importante pontuar que as criaturas do plano inferior se valiam disso para cometer suas atrocidades mais impunemente. Houve uma grande luta num antigo bordel na região central da cidade aonde Carlos e mais três sacerdos lutaram contra 23 upyres. No fim, só ele sobreviveu, e isso conferiu-lhe a imagem  de “especialista” sempre que o assunto era este tipo de demônios.

Ela parou e inspirou de firma grave, como se fosse difícil reaver aquelas lembranças. Eu conheço a sensação.

- Ele odiava isso. Carlos era muito humilde, e não gostava de ser visto como autoridade ou referência. O sumo-sacerdo faleceu pouco depois desta luta no bordel e Carlos foi convidado para assumir o posto, à despeito da pouca idade. Ele negou, preferia ir à campo. Eu ao acompanhei por cinco anos, mas confesso que nos últimos já não me preocupava mais em aconselhá-lo. Numa noite de chuva de verão, quando retornamos ao Templo foi convocada uma reunião. Um upyr tinha feito dezessete vítimas numa formatura de colégio na Zona Norte da cidade. O responsável por esta chacina foi Lucas Malta.

O nome maldito me fez cerrar o punho que ainda estava nas mãos dela. Não entendia como era possível odiar tanto alguém sem face, uma figura que nunca tinha nem mesmo estado em minha presença. Mas minha sede de vingança era genuína e visceral, a menor menção do nome daquele ser fervia meu sangue. Como pedido, segui em silêncio.

- João, outro sacerdo da ordem que estava em perseguição ao demônio há alguns dias, não conseguiu evitar a atrocidade. Pior, ele foi ferido tentando impedir Malta. Conseguiu chegar ao Templo com muita dificuldade, mas trouxe duas informações valiosas. A primeira era que o inimigo estava ferido, ele havia conseguido tocar seu peito com uma solução de agua-benta com pedaços de alho, que é extremamente letal para eles se não for tratado com cuidado. A segunda foi de que Malta teria ido buscar este tratamento em Paris, onde havia clãs poderosos de upyres e este tipo de cuidado estava mais acessível do que no Brasil. Após dizer estas coisas, infelizmente, irmão João faleceu. 

- O conselho se fechou em reunião. Malta é perigoso e já sabíamos disso naquela época. Era importante aproveitar esta oportunidade para acabar com ele de uma vez por todas. Claro que existia a ordem parisiense e ela poderia ser contactada, mas mandar uma mensagem demoraria meses e não sabíamos se ela realmente chegaria ou mesmo se os franceses poderiam arcar com uma luta dessas agora. Cada um tem os próprios demônios para combater.

Outra pausa de Catharina. Essa maior. Ela tirou as mãos da minha e as passou pelos cabelos, senti que ela fazia força para não chorar. Respirou fundo e seguiu:

- Ficou decidido ao fim do conselho que Carlos embarcaria para Paris com a missão de matar Lucas Malta. Eu fui a favor, a mesa toda foi. Parecia mesmo a escolha sensata a ser feita. Se eu soubesse teria me posto contra mas eu não podia prever. - ela parou para respirar - Pegamos um navio para a Europa no dia seguinte, só eu e ele. Eu poderia ter me transportado para lá facilmente e no espaço de segundos estaria em Paris, mas ele não. Eu já considerava Carlos um grande amigo, por isso preferi ir com ele e fazer companhia nos meses que a viagem levou. Ele não estava nervoso, pelo contrário, estava animado por sair do Brasil pela primeira vez. Pablo, você pode me dar um copo d’agua por favor?

Eu estava tão atento à história que achei estranho levantar. Enquanto ia à cozinha pegar o pedido de Catharina senti o perfume de Carol em mim e abri um sorriso ao lembrar do beijo. Quando voltei, Catharina pegou o copo com força, parece que ela tinha se recomposto na minha rápida ida à cozinha, ou talvez eu não tenha sido tão rápido assim. Continuou:

- Desembarcamos na Cidade do Porto em Portugal e a diferença de clima já foi abrupta. Pernoitamos na sede da ordem de lá e no outro dia bem cedo pegamos um trem para Paris, passamos alguns dias nele. Carlos tinha pensado numa nova arma, uma espécie de besta que lançava estacas e não flechas. Pretendia concluir sua missão com ela. Ao descermos em Paris nevava, por sorte tínhamos pego roupas de inverno no Porto, e, quando pisamos na plataforma da estação de trem francesa um garoto de boina passou entregando alguns folhetos dizendo que estariam apresentando naquela noite um ballet no Théâtre de l’Odéon, Carlos sempre simpático conversou com o menino num francês bem ruim e pegou um dos folhetos, guardou no bolso. 
- Como vocês íriam fazer para encontrar Malta lá? Paris é enorme!


- Carlos tinha um plano, mas ele só poderia ser executado dois dias depois. Por favor, não interrompa. A sede da ordem de Paris fica até hoje na tradicional Notre-Dame. Lá nos apresentamos ao sumo-sacerdo que nos recebeu muito bem e disse que realmente não poderia arcar com uma luta contra upyres agora, eles estavam tendo ataques frequentes de aabas e incubus no Quartier Latin e toda a equipe estava alocada lá. Conhecemos nossos aposentos, mas Carlos não quis ficar lá muito tempo, queria conhecer a cidade. Como eu precisava comunicar ao plano superior nossa posição combinamos que retornaríamos à meia-noite para Notre-Dame e só então nos prepararíamos. Eu subi, e quando nos encontramos de novo, Carlos me disse que tinha ido ao l’Odéon e estava encantado com o espetáculo. Ele tinha visto a montagem de um espetáculo que havia estreado uma década antes chamado “Coppélia”. Ficou tão impressionado que esperou na porta do teatro para cumprimentar toda a companhia na saída. Lembro da euforia na sua voz ao me contar que a protagonista do espetáculo, a bailarina que mais o encantou, era do Rio de Janeiro e tinha chegado lá alguns anos antes só. Seu nome era Carolina LeBion.

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