sábado, 14 de março de 2015

Ver025



Amanhece e só então percebo que virei esta noite escrevendo. Levanto da cadeira com um salto e para fechar as cortinas num reflexo condicionado que aprendi a ter há muito tempo. O apartamento se acostumou a ser escuro. Como eram os olhos dela.

Tomo um banho e me ponho de volta debruçado na velha Olivetti Lettera 25. Bebo meu café da manhã, uma cerveja dessas de produção nacional e gosto suor. Desce amargo, como deveria ser. Começo então, a me lembrar da época mais dura do meu treinamento.

Os meses de sumiço da Carol.

Minha recuperação não foi tão demorada quanto eu achei que fosse. Dentro de dois dias meu sangue já estava de volta ao volume normal. Ainda precisava tomar alguns cuidados, mas nada grave. Catharina ficou ao meu lado todos estes dias, não saindo em nenhum momento. Ganthem, o Ofanim desagradável bateu na minha porta no fim do segundo dia para saber notícias e ouvi Catharina lhe dizer que voltaríamos ao treinamento no próximo dia.

Isso me animou. Fazia cinco dias que eu não tinha notícias dela e eu começava a ficar preocupado. Achei que, após ela saber que voltei a frequentar a Candelária regularmente, iria me fazer outro contato daqueles surpresa que só ela sabia fazer. Esse pensamento me fez sorrir sem perceber.

Catharina desenvolveu uma mania engraçada de trancar a porta duas vezes para ter certeza de que ninguém entraria mesmo sabendo que Carol preferia usar a janela. Ela repetiu seu novo transtorno obsessivo compulsivo e entrou no meu quarto à tempo de ver o sorriso que a lembrança de Carol tinha posto nos meus lábios.

- O que é tão engraçado?
- Você achar que a minha porta de madeira compensada pode parar um ataque de demônios é engraçado.
- Só estou cuidando de você, Pablo. De nada, inclusive.
- Você não precisa fica preocupada se a Carol vier aqui, sabe...
- Pablo, você realmente quer seguir com isso? - a mudança de tom foi tão brusca que eu quase pedi para que ela repetisse a pergunta - É que parece que você está tratando isso tudo como uma grande aventura. E não é isso, Pablo! Pessoas se machucam, pessoas….morrem fazendo o tipo de coisa que fazemos. Quando Victor me contactou e eu fui ao templo atrás de você, temi o pior. E eu preciso te confessar que não estou preparada para falhar com você de novo. Se você não estiver completamente disposto a se dedicar a isso, acredito que você deva repensar o treinamento, para o seu próprio bem. Afinal o que você quer com tudo isso?

Catharina não estava agressiva e o que ela disse não soou como um sermão. Na verdade, parecia cansada, mas ainda assim suas palavras tinham tom cuidadoso e acolhedor. Foi um puxão forte de volta à realidade. Não digo sobre Carol, sabia que o que é que tivesse acontecido depois que eu apaguei, não foi a intenção dela me machucar. Mas eu estava trilhando um caminho bastante perigoso e, confesso, na época não tinha muita dimensão disso. Desde que Carol se aproximou tudo havia estado tão certo que eu esqueci momentaneamente do risco que era essa estar nessa missão. Lembrei do meu pai e tive saudade. Uma saudade afiada como um bisturi cirúrgico que causava dor e, ao mesmo tempo, me fazia ter vontade de impedir qualquer coisa parecida com aquilo acontecer novamente.

Sem pensar nada, como uma resposta automática eu disse:

- Eu quero parar todos os demônios que possam fazer as coisas que Lucas Malta faz. Quero matar esses filhos da puta com as minhas próprias mãos.
- Você soa como Carlos. Espero que Carolina não bagunce seus julgamentos morais como fez com ele. 

Carolina. Porque ela ainda não havia feito contato? Será que não tinha gostado do que fizemos? Quando eu a veria de novo? Começava a me questionar o que houve de errado. A animação que começara a surgir em mim ia ficando mais tímida a cada segundo. No fundo, bem lá no fundo, se esboçava um pensamento perturbador. O pensamento de que não a veria novamente.

- Vamos? Se sairmos agora é possível que você surpreenda aos instrutores chegando na hora.

Catharina saiu pela porta e eu a segui.



+++


Passava da hora do almoço, mas eu ainda não sentia fome. A igreja estava vazia neste dia, à exceção de dois turistas estadunidenses que fotografavam a estrutura interna. Passamos por Eduarda que falava algo com o Favrashi de Gabriela, que era o de cabelos enrolados e aspecto moderninho. Passei por eles e o anjo, que se apresentou como Olyver:

- Prazer, Olyver? Isso é russo? - Brinquei
- Hahahah, não não. É de uma língua um pouco mais antiga. - disse bem humorado e com um sorriso caloroso. Olyver ganhou minha simpatia automaticamente, como Catharina também conseguiu. Continuou, ainda carismático mas agora com certo peso - Catharina nos contou o que aconteceu, espero que esteja tudo bem. 
- Fora isso aqui - puxei os esparadrapos que cobriam o lugar onde ela tinha me beijado pela última vez - estou pronto para outra.

E só Deus sabe como eu realmente queria outra noite daquelas. Não sei se Olyver entendeu, mas estendeu a sua mão para mim num cumprimento e, de sobrancelhas levantadas, retornou para sua conversa com Eduarda. De passagem vi que seus olhos bem verdes carregavam uma seriedade que contrastava drasticamente com a leveza de Reint. 

Achei ter sido impressão e desci para o Grande Salão. Desta vez padre Pedro não estava presente, era o dia que eu teria minha primeira orientação com Victor e, apesar dos outros já terem tido duas aulas com ele enquanto eu estive em recuperação, não pareciam muito mais animados que eu. Catharina, Hoan e o Favrashi calado e discreto de Júlio, que eu ainda não sabia o nome, também estavam presentes.

Caminhei até onde estavam Gabriela e Júlio e perguntei por Vinicius. Apesar de não ter exatamente uma forte afinidade com nenhum deles ainda gostava de Gabriela, conseguia sentir a sinceridade que ela exalava. 

- Ele está dando detalhes do que aconteceu alguns dias atrás para Victor. Estão ali na sala de arquivos tentando identificar quem…ou melhor, o que o atacou.
- Ele já contou alguma coisa para vocês?
- Não, e nem você. Reint me contou que você foi atacado por uma espécie de, vampiro. - Júlio fez uma afirmativa que ganhou tom de pergunta na última palavra. Estava estranhamente fascinado com tudo aquilo. Acredito que, de nós quatro, Júlio era o mais destemido.
- Reint? 

Júlio apontou para o rapaz que usava um terno de mafioso ao lado de Catharina e Hoan.

- Foi uma upyr, na verdade. - porque Carol ainda não havia feito contato? - Mas está tudo bem agora. 
- Este já é o segundo ataque que você sobrevive, - percebi que gostava mais de conversar com Gabriela do que com Júlio - acho que alguém lá em cima gosta muito de você, hahahah.
- É, parece que sim.

Victor e Vinicius iam se aproximando. O exorcista veio na frente, vestes pretas, típicas de clérigos mas não usava batina. Quando passou, fez sinal de que o seguíssemos até a sala aonde costumávamos ter a orientação. Percebia que, apesar de estar aparentemente sem ferimentos, Vinicius mancava mas antes mesmo que eu levantasse Júlio já estava se propondo a ajuda-lo. 

Fui o último a passar pela porta e Victor bateu-a quando estávamos todos sentados. Seguiu até o centro da sala pequena e disse:

- Não é supresa que Vinicius foi abordado alguns dias por um demônio. - os olhos escuros fitaram meu colega - Porque você não divide com eles sua experiência?

Visivelmente desconfortável, Vinicius o fez:

- Estávamos vindo para a cá, Olyver e eu. Ainda era dia, não passavam das 14h, entramos numa rua estreita…na verdade era um beco, e vinha em nossa direção um homem. Eu senti que algo estava errado mas resolvi não dar atenção. O homem andava de modo estranho, como se estivesse machucado nas pernas, não parecia morador de rua ou algo do tipo. - as mãos dele se fecharam sobre os joelhos - Quando passamos por ele eu olhei para trás e a sua cabeça estava virada para mim num angulo impossível. Percebi antes de Olyver, mas era tarde demais. Com um movimento ágil, ele pegou impulso numa parede do beco e desceu com  as pernas no tronco de Olyver. A pancada foi forte, um homem de meia-idade não teria aquela força. Busquei o terço como você tinha dito, Victor, mas fui lento demais. Logo a criatura estava na minha frente e passou a perna por trás das minhas. Caí facilmente.

Gabriela estava com as duas mãos levadas à boca, Júlio de olhos arregalados. Os lábios de Vinicius tremiam, só agora eu percebi olheiras profundas sob seus olhos.

- Ele…ele falava em tom gutural e numa língua incompreensível para mim. Os olhos do homem, se é que ainda era um homem, reviravam nas próprias órbitas e sua língua parecia ter um comprimento bem maior do que o normal. Com os dedos que apontavam um para cada direção, ele alcançou uma pedra e a levantou sobre a minha cabeça. Tive sorte que Olyver conseguiu montar um escudo forte no exato momento que ele desceu os braços. A pedra voltou com toda a força para a garganta do infeliz. Que levantou fazendo barulhos nojentos e saiu de do beco com seu andar deficiente.

Um silêncio negro desceu sobre a sala. Todos olhávamos para Vinicius e ele não estava à vontade com aquilo. Victor se levantou de uma vez, passou a mão pelos cabelos e disse.

- Você e Olyver estavam no Flamengo quando aconteceu, certo?
- Isso, não lembro ao certo a rua...

- Ótimo! - Victor o interrompeu - A aula hoje vai ser prática, garotos.

quarta-feira, 4 de março de 2015

Ver024



Não me entenda mal, eu não sou mentiroso. Na verdade eu odiava mentir, mas o fazia quando era necessário e geralmente era convincente. 

Não naquele dia.

Quando a maioria dos membros da Ordem foi embora, eu achei que tinham comprado o que eu disse sobre não lembrar muita coisa depois do suposto ataque sofrido duas noites atrás. Ficou mais fácil organizar as coisas na cabeça depois que aquele anjo de olhos vazios foi embora e, justo quando eu comecei a relaxar Catharina e padre Pedro vieram com aquela pergunta. Diretos como um trem-bala.

- E então, que tal nos contar a verdade agora? - Catharina disse, de braços cruzados e aquilo me bateu como um tapa no rosto.
- Como assim? - dissimulei
- Pablo, padre Pedro me disse que você não foi jogado na entrada do templo e deixado lá à própria sorte. Alguém o trouxe aqui para dentro. Alguém com flamejante cabelos ruivo, certo Pedro?

O velho padre parecia desconfortável com toda aquela situação, com se Catharina estivesse obrigando-o a delatar um amigo. Minha simpatia pelo homem crescia mais a cada momento.

- Eu acordei com um barulho aqui em cima. Subi as escadas e vi alguém trazendo você desacordado nos braços. Cheguei a pensar que fosse Catharina quando a vi de longe, meus olhos já não são mais tão confiáveis como eram, eu acho. Mas chegando mais perto eu vi que não poderia ser ela ou nenhum outro celeste porque a criatura estava sofrendo por estar aqui. Mas é curioso porque ela, seja quem fosse, não parecia ter atacado você. Na verdade, me pareceu que ela estava tentando salvar você.
- Marcelo esqueceu de falar uma coisa mais cedo. Vítimas de upyres, totais ou mesmo aquelas que foram transformadas, quase sempre mostram marcas de resistência ao ataque. Você não. Era como se você tivesse se entregado à ela. Então agora nos faça um favor e o que você e Carolina LeBion fizeram duas noites atras. - Catharina num tom muito inquisidor.

Ao saber que ela tinha me levado até la, a mão que parecia estar apertando meu coração desde que comecei a pensar que Carol tinha me abandonado sumiu como que por encanto. Mas o sentimento de alívio durou muito pouco porque minha cabeça começou a se questionar o que me trazer à Candelária poderia ter custado a ela.

- O que aconteceu com ela? Quer dizer, quando me deixou aqui? Marcelo nos disse na sala que igrejas são a única arma absoluta contra qualquer tipo de demônio. Nenhum deles pode por os pés em igrejas. Aonde ela está? - o silêncio dos dois era como uma agulha sendo pressionada contra meu cérebro - Por favor?
- Ela começou a tremer muito e se contorcer. Cada passo lhe pesava muito. As veias saltavam na pele muito pálida e as olheiras faziam os olhos parecerem pequenas bolas de gude. Estou no ramo há alguns anos, filho. Já vi demônios poderosos tombarem assim que passaram por aquela mesma porta. Essa…menina andou quase até o altar com você nos braços. 
- E?
- E depois foi embora.
- Assim, sem mais nem menos? Ela disse alguma coisa? Para onde iria, algum contato…qualquer coisa?
- Não, sinto muito.

Sacerdos são treinados para captar as emoções alheias, isso é uma arma muito poderosa quando precisamos identificar algum demônio na multidão de mortais. Mas padre Pedro era capaz não só de sentir, mas como de acalmar qualquer emoção ruim que pudesse tomar conta de alguém. Percebendo que eu fiquei cabisbaixo com a notícia, ele pôs a mão no meu ombro e me disse:

- Mas não se esqueça de que ela entrou aqui só para salvar você. 

Seu sorriso não era largo, mas era sincero e isso bastou para me acalmar um pouco naquele momento e fez brotar uma chama de esperança de que ela poderia estar bem. 

- Na minha reunião com Hoan e os outros Favrashi, a segurança de vocês foi um importante ponto de discussão. Anteontem decidimos que não vamos mais ao plano superior dar e receber informações até a ordenação de vocês quatro. Ganthen foi designado para fazer a função de mensageiro, embora não tenha ficado muito feliz com isso. Houve uma outra tentativa de ataque ontem à noite enquanto você se recuperava, Vinicius foi abordado no caminho para a orientação que Eduarda aplicaria, a sorte é que Olyver, seu protetor, estava com ele. Aquela pobre menina Bruna foi morta antes mesmo de começar o treinamento. Eles já sabem o que a gente está fazendo aqui e vão se empenhar em impedir. A decisão que tomamos foi a de acompanhar nossos protegidos incessantemente vinte e quatro horas por dia. Eu estaria preocupada com o seu ataque se realmente acreditasse que foi um ataque, mas não foi, certo? 

Catharina tinha na voz a confiança de quem usa um argumento irrefutável em uma discussão. Eu não mentiria pra ela, até porque ela já sabia da minha relação com Carol. Mas me preocupava com o que padre Pedro pensaria daquilo tudo. Meus olhos foram dela para ele e voltaram para Catharina. 

- Não se preocupe, Pedro sabe. Eu contei a ele que você tem recebido visitas de Carolina LeBion. E de todo romance que vocês tiveram no passado.

Padre Pedro afirmou com um leve aceno de cabeça. Senti uma raiva instantânea de Catharina por ter contado esse segredo para ele, mas durou menos que um segundo. A raiva deu lugar a um orgulho inexplicável, mas bastante forte, por ter ouvido que eu tive um romance com Carol. Mesmo que tenha sido em outra vida. 

- Bom - eu comecei relutante - saí daqui e me despedi de todos antes de pegar o caminho até a estação de metrô. Em algum ponto no meio do caminho ouvi ela me chamando. Me virei e a vi, Carol usava um vestido vermelho...


+++

Falar ainda era algo incômodo, mas contar da noite que tivemos me fez voltar ao abafado apartamento na Lapa e quase reviver tudo que fizemos. Disse tudo para eles, omitindo os detalhes desnecessários apenas. Catharina e padre Pedro acreditaram quando eu disse que não lembrava nada após o beijo que ela havia dado no meu pescoço.

Minha Favrashi que alegava já saber que não havia sido um ataque estava muito mais perplexa do que eu imaginei que ela ficaria quando eu terminei meu relato. O bom padre negro esfregou a manga de suas vestes negras na testa também negra para limpar o suor e eu consegui ver através de suas emoções. Não era choque ou perturbação. Parecia nostalgia, como se ele tivesse tido uma experiência parecida com a minha anos e anos atras. Preferi não tocar no assunto mas esbocei um sorriso que foi correspondido por ele. Catharina falou:

- Eu ainda não acredito que ela fez isso! 
- Ela fez, e fez muito bem. - brinquei.
- Catharina está certa, este tipo de relação pode comprometer não só o seu desempenho como sacerdo, mas também a sua própria vida. - Pedro falava com uma seriedade comicamente dissimulada na voz.
- Exatamente! Além de ser explicitamente proibido pelas regras desta Ordem!
- Bom, tecnicamente isso não é verdade...
- Do que você está falando?
- As regras incentivam sim a não relação com outros mortais, até pelo sofrimento que isso poderia causar para ambas as partes se o um demônio descobrisse que o secando tem entes queridos. Mas eu não lembro de nenhuma ressalva sobre relações com infernais, você poderia me dizer alguma?

Catharina cruzou os braços e sentou novamente nos bancos da catedral. Eu finalmente consegui levantar e, apesar da dor, me sentia bem. Se eu fechasse os olhos e me concentrasse bem, ainda conseguia sentir seus cabelos no meu rosto e o perfume da sua pele em mim.

É engraçado porque pessoas costumam odiar cicatrizes. Eu gostei gostei do fato daquele anjo de presença desagradável não ter conseguido tirar as cicatrizes que ela fez em mim. Levei as mão ao meu pescoço, gesto que eu repetiria muitas vezes depois disso, e mesmo com o curativo eu as senti ali. Era como sentir seus lábios no meu pescoço de novo e isso me fez começar a pensar quando nos veríamos novamente. 

Infelizmente seria um bom tempo depois dali.