segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Ver017



Precisei parar um pouco para lavar o rosto, faz uma noite bem abafada hoje. Deixei meus óculos na mesa e fui até o banheiro apertado. Tenho evitado sair em fotografias ou mesmo me olhar no espelho, durmo pouco e como menos ainda. As olheiras estão cada dia mais fundas.

Ao abrir o armário procurando uma toalha limpa eu encontrei uma calcinha que ela deve ter esquecido aqui, preta e transparente. O toque da renda nos meus dedos e no meu rosto fez meu sangue subir.

Carol foi quem achou este apartamento. Preferi não saber como ela teve certeza de que não havia ninguém morando aqui, quando ela disse que sabia de um lugar onde poderíamos nos ver, eu só concordei. Era perfeito, como eu já disse, a Lapa é uma confusão de emoções e sentimentos constante e isso torna muito difícil encontrar uma presença específica aqui. 

Retorno à velha mesa de madeira compensada e olho ao meu redor. Não é só a lingerie no armário, cada canto deste apartamento tem memórias dela. É quase engraçado pensar que passei esses últimos anos caçando demônios e agora não consigo me livrar dos meus. Na verdade, talvez eu não queira.


Essa sensação de falta tem sido uma companheira ingrata desde aquele dia e ela não melhora com o tempo. Novamente levo a mão às cicatrizes arredondadas que ela deixou no lado direito do meu pescoço.

Naquela noite a sensação de perda também me acompanhava, correndo pela Presidente Vargas atrás de um jeito para chegar em casa. Quase arranhei a marca de comunicação que Catharina havia deixado no meu pulso, mas não houve resposta. 

Um taxi surgiu solitário na noite e eu parei no meio da rua para obrigá-lo a parar. O motorista me viu machucado e sujo, mas sua surpresa ficou só no semblante. Eu disse:

- Está livre?
- Estava voltando pra casa já...para onde você vai?
- Copacabana, rua Paula Freitas.
- Bom...é um pouco fora do meu caminho, mas você parece que precisa de um descanso mesmo. Te levo lá.

Entrei no taxi e a corrida de aproximadamente 20 minutos foi feita toda em silêncio para o meu alívio. Não estava com vontade de responder nenhuma pergunta curiosa naquela noite. 

De novo esfreguei meu pulso com o polegar e, de novo, Catharina não me respondeu. Eu estava disposto a contar da visita de Carol e sabia que isso deixaria ela revoltada, mas eu precisaria de Catharina pra me ajudar a descobrir porque Carol tinha sumido.

Entrei em casa e logo tirei a batina que, devo confessar, me incomodava também e fui tomar um banho. Parecia que já havia passado muito tempo desde a luta com o berne na Glória, os ferimentos não incomodavam mais. Também não sentia os socos que levei cerca de uma hora antes, minha cabeça estava em outro lugar.

Carolina era uma incógnita. Um mistério do qual eu não sabia muita coisa, e as indagações eram muitas. Com tantas dúvidas, o mais racional seria eu deixar de pensar nela. Entretanto o que acontecia era exatamente o oposto: a lembrança dela, que ainda hoje eu tinha vívida nos olhos, me fascinava. Eu precisava de mais um encontro com ela, precisava saber mais sobre ela.

Minha fixação, confesso, parecia sem sentido, e eu já reconhecia isso na época mas não me importava. 

Existe uma característica sobre mim que eu deixei passar quando me apresentei, é sobre a minha memória. Não é que ela seja acima da média ou nada disso, mas eu tenho a capacidade de registrar todos os mínimos detalhes de uma situação pela qual eu tenha passado. Se, por exemplo, me perguntarem a data de início da Revolução Francesa, algo que eu vi nos anos de colégio repetidas vezes, não saberia dizer mas carrego comigo nitidamente coisas como qual era a flor na lapela do paletó que meu pai usava na festa de ano novo de 1997. 

Era um cravo.

Alguns diriam que é a chamada "memória fotográfica", eu diria só que eu guardo bem detalhes. E uma das imagens que eu tenho recentes na memória me deu uma idéia. Enquanto Victor nos orientava pelos corredores subterrâneos da Candelária passamos por uma câmara mais escura e estreita que as outras. 

- Está é a biblioteca de invocação. Aqui guardamos os livros, manuscritos e materiais que vocês precisariam caso fossem invocar algum infernal.

Ao centro da sala havia uma mesa preta, ornamentada com quinas vivas e pernas que terminavam em garras. Nela estava exposto um papiro que relatava com imagens bem didáticas um ritual de invocação goético. O exemplo mostrava a invocação de um demônio de primeira ordem chamado Belial, mas eu me perguntei se ele não poderia ser usado para invocar algum tipo de demônio menor. Uma upyr, talvez.

Tinha o papiro em minhas mãos a menos de vinte e quatro horas atrás. Minha habilidade mnemônica não teve muita dificuldade para me gerar uma fotografia mental do ritual, que para minha sorte era feito com objetos bem simples. Eu precisaria de um giz, seis velas, um espelho, uma folha de papel e recitar algumas palavras numa certa ordem.

Abri espaço no centro do meu quarto empurrando a cama até ela bater na parede que tinha a única janela do cômodo. Com o giz desenhei um círculo com mais ou menos um metro de diâmetro e dentro dele um segundo círculo menor. Marquei um ponto no centro do dos dois círculos e fiz dele também ponto médio de uma estrela de cinco pontas. Entre as pontas da estrela desenhei símbolos que eu não reconhecia, mas estavam no documento que eu havia visto. Peguei as velas e pus uma em cada ponta da estrela, a última ficava no ponto médio do desenho. Todo o círculo foi desenhado num lugar que, ao ser refletido no espelho de corpo inteiro da minha parede, a estrela ficasse invertida. Acendi todas as velas e escrevi "Carolina LeBion" num pedaço de papel qualquer. Entrei no círculo.

Antes de começar eu pensei em contactar Catharina uma terceira vez caso algo desse errado. Mas o ritual deveria ser feito em número ímpar e eu duvidava que ela fosse aprovar algo assim.

Estava quente, ainda mais ali dentro rodeado pelas velas se consumindo. Me posicionei de frente para o espelho e fui passando o papel com o nome dela em cada vela e, por fim, deixei que queimasse todo na vela central sempre dizendo as palavras que não aparentavam fazer sentido. Quando já não havia papel eu fechei os olhos e por minutos continuei recitando aquele poema infernal na esperança de que, ao abri-los, ela estaria ali no círculo comigo.

Invocar um demônio é um ritual delicado e bastante perigoso, com o conhecimento que tenho hoje nunca teria me arriscado fazendo algo deste tipo sozinho e sem orientação. Olhei ao redor e vi que havia falhado. Ela não estava no círculo. Apaguei as velas com certa violência e sentei de volta no círculo de giz que agora parecia ridículo. Me olhava no espelho decepcionado.

Clap! Clap!
Ouvi palmas e foi como se eu tivesse dormindo e despertasse.

- Seu enoquiano é horrível, hahaha. - Carol estava novamente no parapeito da minha janela me olhando e rindo do meu estado derrotado. Neste dia usava os cabelos ruivos soltos com um vestido azul marinho que tinha dois cortes na cintura deixando aparecer bastante da sua barriga. Tentava não imaginar minhas mãos naquela cintura e falhava.

- Então o ritual deu certo! Estranho, achava que era pra você aparecer aqui no círculo.
- Nao seja metido, claro que não deu certo. Eu já estava aqui desde que você começou a montar tudo isso, só deixei você continuar porque bom, era engraçado. Aquela vela ali não é para estar no meio da estrela, à propósito. Mas achei fofo você querer me invocar. Ridículo, mas fofo.
- Eu não queria te chamar só pra ver você! - menti.
- Claro que não. - Carol disse irônica - Porque você ia me chamar só pra me ter aqui...no seu quarto...sozinhos, não é mesmo? Posso entrar?

Concordei com a cabeça.

- Não, você precisa dizer.
- Você realmente gosta das coisas bem certinhas, né? Vem, pode entrar. 
- Se eu gostasse das coisas certinhas teria usado a porta da frente, não a janela, Pablo. - ela disse enquanto ficava de pé na minha cama - Então, o que você quer de mim?

Eu nunca consegui entender quando exatamente Carol estava sendo sensual ou falando sério porque tudo nela fazia meu sangue subir, mesmo quando ela não tinha a intenção. Poderia ter pensado em mil respostas para aquela pergunta, mas disse:

- Encontrei sua amiga Máira antes de vir para casa, sabia? Ela me disse que você tinha sumido. Porque você fugiu?

Como disse, a noite era quente e eu comecei a tentativa de ritual pouco depois de sair do banho, não me incomodei em botar uma camisa. Sou franzino, mas Carolina não tirava os olhos do meu peitoral e isso me deixou um pouco sem jeito. Do alto da cama ela falou:

- Antes de responder você pode colocar uma camisa? Não consigo me concentrar com você assim, mas não fique muito convencido, é o seu ombro ali que está me...incomodando.

Meu ombro ainda não havia curado completamente, no encontro com Máira ele abriu de novo e agora estava cicatrizando. Fiz como ela pediu sem disfarçar que aquilo tinha me deixado realizado. Ela continuou:

- Sim, eu estou repensando algumas coisas da minha vida agora e prefiro estar sozinha nesse momento. Como ela está?
- Insuportável, como sempre. Achava que eu tinha sumido com você quando você veio da ultima vez.
- Hahaha, como se você pudesse.
- Eu me ordenei, sabia? - falei provocante, ela respondeu com um olhar de desdém - Ok, não me ordenei. Mas já fui a primeira reunião e estou decidido.
- Bom, isso é uma pena.
- É?
- Para você, claro. Você sabia que, mesmo no seu clubinho especial, o celibato é obrigatório, certo? Que pena para você. - ela sentou na minha cama e cruzou as pernas lentamente sob o vestido. Fiquei vermelho, de vergonha e de vontade. Carol sempre soube me deixar sem jeito.

Sabia que era arriscado mas isso não me impediu, me sentei ao seu lado. Respirar era mais complicado agora.

- Tudo bem, se você queria algum tempo sozinha para fazer...o que quer que você fosse fazer, porque você veio aqui mesmo antes de eu começar o ritual?
- Não, não! Eu perguntei o que você queria com essa tentativa engraçada de me invocar primeiro.
- Mas eu já disse.
- Sério que você rabiscou o chão do seu quarto com giz e acendeu velas só para me fazer uma pergunta? É tudo que você quer saber de mim?
- Na verdade não, eu tenho mais.
- Eu sei que tem.
- O que? Você lê mentes também?
- Não, mas é que você sempre foi muito óbvio para mim mesmo.

Ela olhou para mim com os olhos muito escuros e me prendeu neles de um jeito que, se eu não usasse toda a minha força de vontade teria agarrado ela ali mesmo.

- Máira disse outra coisa também.
- O que ela falou?
- Ela disse que, bom, desde a noite que nos conhecemos no Arpoador você está diferente. Que tem pensado em mim...

Carol levantou alarmada e eu demorei um pouco para perceber que não foi por causa do que eu disse, ela provavelmente não ouviu. Visivelmente nervosa ela disse:

- Pablo, tem mais alguém aqui?
- Não, estamos sozinhos.
- Pablo, tem mais alguém aqui! - dessa vez não era uma pergunta.

Eu levantei também e, antes de estar totalmente de pé Catharina já tinha aberto a porta.

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