terça-feira, 26 de agosto de 2014

Ver003



Levanto para fazer um café quando a fita da máquina de escrever começa a falhar. Enquanto a prensa francesa esquenta eu pego a fita nova no meu armário e jogo a antiga fora. Ao abrir o rolo para colocar na Olivetti eu acabo me cortando e num reflexo levo o dedo à boca. Fiz este mesmo gesto quando a vi pela primeira vez e é impossível não lembrar disso quando sinto o gosto do meu próprio sangue na boca. É amargo.

O barulho dos pingos da chuva que previ mais cedo batendo na minha janela  conseguem me acordar dos meus devaneios e me ponho de volta a escrever.

Lembro que estava bastante perturbado com tudo aquilo que Catharina tinha me dito no caminho pra casa. Passamos o caminho todo da boate até a minha casa basicamente em silêncio. Na época eu morava em Copacabana, numa rua que faz esquina com o Royalty Copacabana Hostel, e ao virar esta mesma esquina percebo que Catharina já não estava mais me acompanhando. Cheguei em casa e meu pai não estava. De novo. Pelo menos eu teria tranquilidade para me convencer de que aquilo tudo foi uma grande invenção da minha cabeça, negar tudo aquilo com argumentos como ter bebido demais antes de ir para aquela festa me acalmou e eu consegui dormir depois de algum tempo.




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Acordo com um susto. Um susto sem motivo aparente, como se alguém tivesse me empurrado da cama mas, ainda estava deitado quando abri os olhos. Fui a cozinha tomar um como d’agua e ao acender a luz escuto o barulho de uma mordida atras de mim.

- Eu sempre gostei de maçãs, sabe? 

Disse a garota de decote generoso que eu tinha visto na festa mais cedo. Eu estava sem meus óculos, mas consegui reconhece-la e, de novo precisei me apoiar na bancada da cozinha para não cair. A presença dela era fisicamente perturbadora e ela sabia disso, veio caminhando em minha direção com um sorriso nos lábios.

- O que foi? Você não gosta de mim?
- Não… não é isso..

E de repente o medo que eu senti começou a se tornar outra coisa. Pouco a pouco foi se tornando um sentimento mais agradável, parecia quase bom estar com aquela figura. Ela vinha se aproximando com calma e a cada passo me deixava mais embriagado com a presença dela. Mária era é mais alta que eu, tinha o corpo voluptuoso e a pele bronzeada. Os cabelos tingidos caíam sobre seus ombros largos e emolduravam bem suas feições ironicamente doces. Sua beleza não era como a de Catharina, mas era difícil não olhar para ela.

 Ao chegar bem na minha frente ela parou e olhou para mim por um bom tempo, se divertindo com o efeito que ela causava em mim. Sem aviso, começou a desabotoar a minha camisa que eu usava como pijama e, apesar da minha consciência me alertar de que não podia deixar ela fazer aquilo, meu corpo não ofereceu resistência. Enquanto meus ia abrindo meus botões, um por um, ela disse:

- Isso mesmo, você gosta de mim. Não de ouvidos para a Catharina, ela entendeu tudo errado. Você agora vai fazer tudo que eu disser e no fim das contas, eu acho vamos nos dar muito bem.

Eu já estava sem camisa quando ela passou a mão pelo meu peito sem muita atenção. Como Catharina havia me dito Máira era uma Aaba, e por serem de beleza singular, esta categoria de infernais tem a capacidade seduzir quem bem desejar. Eu estava sem defesa, faria o que ela tivesse me dito, não fosse um grito súbito que me acordou do transe. Demorei para perceber que o grito era da própria Máira. Acontece que, ao passar as mãos pelo meu peito ela esbarrou displicentemente num crucifixo que a minha avó havia me dado quando era garoto e passei a usar desde que ela faleceu. O contato com o pingente em forma de cruz fez a Aaba gritar coisas numa língua que eu até ento desconhecia. Era latim.

Ela foi obrigada a se afastar de mim e, quando tomou certa distancia começou a voltar a falar, agora em português:

- Isso não vai ficar assim, seu nanico! Vou fazer você se arrepender de ter saído, de ter cruzado o meu caminho, seu babaca!

E sumiu. Assim, como se evaporasse. Minhas pernas tremiam e eu finalmente cedi. Era real, tudo aquilo era real, eu tinha marcas das unhas dela em mim. Não sei quanto tempo eu fiquei no chão achando que estava enlouquecendo. Depois de algum tempo consegui me arrastar para de volta para a cama.

Eu não sabia, mas depois desta noite nunca mais teria uma noite de sono tranquila.

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