quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Ver004



Como disse, não consegui dormir aquela noite. Olhei para meu relógio, o mesmo que eu uso até hoje e me surpreendi quando vi que já eram quase seis da manhã. Tanta coisa tinha acontecido na última noite que parecia que já fazia uma semana que eu tinha conhecido Catharina somente algumas horas atrás.

Fui tomar um banho tentando não pensar nisso, mas a agua passando pelos arranhões no meu peito insistiam em me fazer lembrar. Ao sair do banho lembrei do meu pai, estranho ele não ter chegado em casa ainda. Ele não atendeu, então liguei pra companhia e me disseram que ele teve que fazer um voo urgente pra Argentina naquela noite, mas não demoraria a voltar. Eu sei que pilotos tem uma vida um tanto quanto desregrada, mas eu odiava quando meu pai sumia assim, desde pequeno. Mas dessa vez isso não me incomodou tanto, tinha muitas outras coisas pra me preocupar nesse momento. 

O dia estava nublado e ventava bem forte, o que não é comum no Rio de Janeiro, mas nada de comum estava acontecendo ultimamente eu não liguei e fui dar um passeio na praia quando terminei o banho.

Não preciso descrever a praia de Copacabana pra quem mora no Rio e, se você nunca esteve lá, todas as fotos dizem a verdade. O mar azul acaricia gentilmente as finas areias brancas da praia que, mesmo num dia nublado estão quentes. Existem conchas aonde acontece o encontro do mar com a areia que eu sempre gostava de colecionar quando era garoto. A praia sempre foi meu lugar de paz.

Eu nunca tive muitos amigos, tenho problemas para confiar nas pessoas, coisa que só piorou com o tempo. Não que eu seja recluso e introspectivo, com certeza poderia ligar para algumas pessoas mas, como sempre, eu preferia lidar com essas coisas sozinho. Não consegui. Alguns minutos após de sentar à sombra do Posto 3 e ligar o shuffle do meu telefone sinto uma mão no meu ombro. Quente, leve e delicada. O simples toque de Catharina tranquilizava e, mesmo com esse meu jeito sempre desconfiado fiquei feliz de ter visto ela ali sorrindo pra mim. Uma âncora de sanidade no meio deste furacão todo.

- Então você é real mesmo.
- É claro que sou. - e sorriu pra mim com ternura - Eu sei que joguei tudo em cima de você muito rápido e também sumi repentinamente quando vi que você estava em segurança, mas eu precisara reportar o quanto antes que tinha te encontrado.
- Reportar?
- É. Agora eu já posso explicar tudo com mais calma. Pablo, você é um ser muito especial. Nós, do plano superior, somos divididos em categorias, cada celeste tem a sua função. Eu sou uma Fravashi, minha missão é encontrar, dar segurança e olhar por você até que tenha concluído seu treinamento. É como se eu fosse…
- É como se voce fosse meu anjo da guarda.
- Acho que este é um dos termos da minha casta aqui no plano físico. Sim, pense em mim como seu anjo da guarda. Vamos ter bastante contato daqui pra frente e tenho certeza de que vamos nos dar bem.

Ainda era difícil de acreditar, mas depois da visita que tive na noite anterior resolvi escutar o que Catharina tinha a dizer sem julgar nada. Eu não estava mais assustado, seu toque e sua voz me acalmavam e ajudavam a deixar tudo mais claro na minha cabeça.

- Voce disse “treinamento”?

- Disse. É, talvez você não goste muito dessa parte. Antes, deixe-me te explicar como é o panorama atual do seu plano. Após a Queda como que para se vingar de Yahweh e de sua criação mais querida, vocês, Lúcifer começou a infestar a Terra com seus mais diferentes tipos de demônios. O início dos tempos foi difícil para a humanidade pois não tínhamos permissão nem mesmo para descer até aqui. Então, os Arcanjos se reuniram e concordaram com uma proposta de Baraquiel, chefe da guarda angelical, que seria o envio de todos Fravashi ao plano físico para proteger os seres humanos. Deus percebeu que isso não feriria o livre-arbítrio e permitiu. Desde então estamos aqui, mas mesmo assim o poder do outro lado também é muito forte e frequentemente os da minha casta sozinhos não dão conta de todo o mau que os caídos podem causar. As guerras mundiais da sua sociedade, os desastres naturais, ou mesmo os pequenos crimes de bairro são ações deles e são ocasiões aonde e e os meus iguais falhamos. Por isso, frequentemente precisamos recorrer à nossos irmãos mais novos, na humanidade existem seres brilhantes, como você Pablo. - Ela viu que eu iria esboçar algum comentário e continuou - Por favor, deixe-me terminar, Pablo. Existem alguns dentre os mortais que vêm a este mundo com notável habilidade, psíquica e física, para identificar e parar tais atos vis cometidos pelo outro lado. Chamamos estes de “sacerdos”. Você é um deles.

- Catharina, eu acho que você pegou o cara errado. Quer dizer, “habilidade psíquica e física”? Eu não sou capaz de vencer uma queda de braço nem com aquele cara vendendo mate ali. Ainda não te contei, mas ontem mesmo aquela garota que você me mostrou ontem em Botafogo, Máira entrou na minha casa a noite e eu não pude fazer nada contra ela. Não posso ser o cara que voce pro…
- A AABA ENTROU NA SUA CASA ONTEM?!
- Foi, pouco depois que cheguei fui dormir um pouco. Acordei inquieto no meio da noite e lá estava ela, na minha cozinha.

Catharina estava visivelmente perturbada.

- Como foi que você sobreviveu ao ataque dela?! Conheci pouquíssimos humanos que encontraram Máira mais de uma vez! E você nem ao menos se iniciou! Não deveria ter te deixado sozinho.
- Catharina calma. Não sei, acho que eu dei sorte. Isso aqui - mostrei meu crucifixo -, ela não reparou que eu estava usando e, ao tocar nele gritou muito e foi obrigada a ir embora.
- Esses….esses arranhões..
- Sim, foi ela que fez, mas está tudo bem. Não me machuquei.
- Ok, precisamos começar logo o seu treinamento. Vamos para a sua casa. Agora.

Sua voz era doce, mas eu sabia que era uma ordem de comando. E eu não a questionei, levantamos e seguimos a rua que daria no meu apartamento. Não tinha reparado que a nossa conversa tinha durado tanto, já era quase hora do almoço quando avistamos o meu prédio e, desta vez Catharina fez questão de subir comigo. Ao abrir a porta senti de novo aquela sensação de mal-estar, mas estar com Catharina do lado deixava a coisa mais suportável. Ela disse:

- Voce também sente, não sente?
- Sim. O que isso quer dizer?
- Se concentre. Feche os olhos e perceba.

Obedeci e por algum motivo pude ter certeza de que alguém tinha estado na minha casa em minha ausência. Não havia nada fora do lugar, nenhuma pista que indicasse isso, mas era tão claro pra mim quanto os olhos de Catharina. E tive também uma intuição de que havia algo na cozinha.

- Entraram aqui. Tem algo na cozinha que devíamos ver.

A cozinha também estava exatamente como eu deixei, exceto por uma maçã mordida no chão. As bordas da maçã, aonde a boca tinha estado começavam a ficar escuras. Ela tinha estado ali ha algum tempo. Foi Catharina que percebeu o bilhete em cima da mesa. Leu, e ficou com os olhos petrificados por alguns segundos antes de, mecanicamente, passar o papel para as minhas mãos. Numa caligrafia displicente estava  escrito:

"Eu avisei que voce ia se arrepender, nanico! Estamos com o seu pai. As 19h de hoje esteja na pedra do Arpoador, ou eu vou gravar os gritos dele para você ouvir. Venha sozinho."

E, no fim da página, havia uma marca de batom como assinatura.

Um comentário:

  1. Uau!
    Conheço a praia de Copacabana, não sou muito fã, mas sou louca para conhecer o Arpoador.
    To amando a história!!!!!!!!!!!

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