quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Ver011



A culpa pelo que eu fiz me consome. Corrói de tal forma que eu já cogitei em terminar com isso algumas vezes. Todas as vezes foi a lembrança dela quem me impediu. Ela e o whisky. Comecei a beber whisky pouco antes de deixar o celibato porque li em algum lugar que whisky anestesiava a dor de amputações traumáticas. E lhes digo que é verdade.

Anestesia mas, infelizmente, não cura. Acabo de esvaziar uma garrafa de Logan 12 anos então, peço desculpas antecipadas por eventuais erros de gramática.

Carol esteve no meu quarto um sem-número de vezes, e eu lembro de cada uma delas não por ter uma memória acima da média, mas é que é fácil lembrar quando você tem uma garota como ela na sua cama.

Naquela primeira visita, entretanto, nós mal nos tocamos e ainda assim eu não conseguia deixar de pensar nela. Mesmo após ela ter ido, eu fiquei alguns momentos embriagado com a sua prensença, que permanecia no meu quarto e quando consegui pensar de novo fui até o parapeito da minha janela onde ela já não estava mais. Tateei a minha nuca que ainda se lembrava do toque frio dela, mas só encontrei os cachos do meu cabelo. Voltei para cama frustrado e o quarto vazio passou a me incomodar. Despedidas nunca foram fáceis quando eram com ela.

Também não dormi esta noite, mas pela primeira vez em algum tempo o que me manteve acordado não foi a falta do meu pai mas sim a presença da Carol que meu cérebro tentava tornar real de algum jeito.

Perdi a noção do tempo deitado na minha cama desarrumada até os que primeiros raios de sol começaram a me acordar do meu não-sono. Levantei e fui tomar um banho. Eu, que costumo gostar de banho quente, dessa vez virei a chave para o lado gelado. 



+++

Pontualmente às 11:30h, Catharina tocou a minha campainha corri, abri ansioso. Mas ela não veio sozinha, não demorei para ver Gathen ao lado dela. O Ofanim estava com a mala que outro dia tinha visto com Merlon, uma camisa polo azul, os cabelos soltos e os olhos presunçosos de sempre. 

- Pablo, informei aos meus superiores que você tinha mudado de idéia sobre o treinamento. E me autorizaram a continuar te acompanhando até você ser ordenado, - Catharina ficava estranhamente formal na presença de outros anjos, era quase engraçado - para isso trago aqui como testemunha o Ofanim Gathen para te autorizar a entrar  na Ordem dos Sacerdos.
- Já que você é tão volúvel, humano, - disse Gathen - sou obrigado a lhe informar que, uma vez que você tenha se ordenado, vai ser um chamariz das criaturas escuras, você vai viver constantemente olhando por cima do ombro ou para os lados, você vai estar sendo observado. Por eles e por nós. Claro que existe a opção de você sair da ordem quando quiser, mas isso não vai afastar os demônios de você, eles não gostam de ser vistos. Isso não é brincadeira, garoto. Meu conselho? Você é fraco demais para isso, volte pra sua vidinha ordinária.
- Obrigado pelo conselho, Gathen - eu disse com sarcasmo - mas imagino que você esteja muito ocupado com seus afazeres já que é um ser tão superior, então porque não vamos logo com isso,  não é?

Gathen suspirou, foi até a mesa da minha sala (que estava limpa graças a Catharina), apoiou a mala e levantou a cabeça subitamente. Na direção do meu quarto.

- Sugiro que você reveja suas companhias também, garoto. Não é bom trazer um infernal para sua casa...foi um upyr, estou certo? - seus olho eram maliciosos.
- Não foi culpa dele! Um upyr entrou aqui e assassinou o pai dele. Garanto a você que tenho protegido o Pablo de quaisquer contatos com os baixos desde então. 

Catharina não tinha entendido que a presença que Gathen havia sentido era da Carol. Sorte a minha, percebi que deveria manter a visita dela em segredo por enquanto.

- Eles morrem tão fácil, não é mesmo?

Meu ímpeto foi partir para cima de Gathen, mas Catharina segurou discretamente meu punho que já estava fechado e usou suas habilidades para me acalmar quase instantaneamente. Ao ver que sua provocação não tinha dado em nada, Gathen sorriu.

- Muito bem, Catharina. Não queremos que Pablo faça nada impensado, não é?
- Gathen, podemos ir logo com isso?
- Desde quando você virou tão profissional, Catharina? Mas você, está certa, estou mesmo ansioso para voltar ao plano superior. Preste atenção aqui, garoto…
- Meu nome é Pablo!
- Preste atenção aqui, garoto e não me interrompa. Essa mala contêm artefatos bastante importantes que você não pode, sob hipótese alguma, tratar levianamente.

Eu imaginava que aquela mala continha alguns papéis ou documentação. Deveria saber que os celestes não precisam de toda essa burocracia. A mala era antiga, marrom e discreta, como disse, poderia ser uma pasta de um dos executivos que trabalha na Rio Branco. Mas por dentro ela continha objetos realmente inusitados: três crucifixos de tamanhos diferenciados, uma batina roxa com duas cruzes bordadas em dourado, uma em cada ponta, um espelho trincado, quatro tubos de ensaio que continha, essências que eu não sabia do que eram, um frasco com agua benta e um terço. Sei que parecem elementos simplórios, mas não se iluda. Eu falharia se tentasse descrever a aura que havia naqueles itens, era como se eles tivessem vida. Toquei no terço e senti que ele respondeu ao meu toque.

- Esse, - disse Gathen - é o seu equipamento inicial, Pablo.
- Equipamento inicial?
- Sim, - Catharina interveio - acontece que a Ordem dos Sacerdos têm diferentes ramificações, Pablo. Não sabemos para que direção você vai ser direcionado, então chamei Gathen aqui pois ele está autorizado a entregar o equipamento padrão para os aspirantes. Uma vez qua saibamos qual vai ser a sua especialidade você vai receber armas mais específicas.
- Crucifixos, um terço, alguns frascos…Catharina você não espera que eu mate o Lucas com isso, não é?!
- Não ouse zombar deste equipamento, mortal! Você não faz idéia do que fala!

Ele pôs o dedo no meu rosto e eu, no tempo de um reflexo, puxei sua mão violentamente para baixo. O toque dele queimava, mas não soltei sua mão.

- Acalmem-se, os dois. Pablo vai entender quando formos ao templo amanha, Gathen, muito obrigado pela sua ajuda. Acredito que você tenha outras responsabilidades agora, estou certa?
- Sim. - ele puxou o braço para si ainda olhando nos meus olhos. - Sim, não vou mais perder meu tempo aqui. Vamos nos encontrar de novo, garoto. Tente ficar vivo até lá, ok?
- Vai ser um prazer.

Catharina o acompanhou até a porta. Quando voltou olhou para a minha mão onde bolhas já começavam a se formar. Juntou as mãos na minha e fechou os olhos. Nesse momento eu pensei em contar para Catharina sobre a visita de Carol na noite anterior. Só pensei. Quando abriu os olhos novamente minha mão já estava sem dor.

- Pablo, eu estou preocupada.
- Preocupada, com o que? - agora eu estava explorando meus novos itens.
- Com voce! Voce disse algo que me preocupou ali.
- Desculpe, mas aquele cara me tira do sério, Catharina.
- É, você devia parar de desafiar Gathen, também. Mas eu estava falando do que você disse sobre o upyr que matou seu pai. Pablo, essa maleta contem artefatos poderosíssimos sim, mas você não pode depender só deles para uma batalha contra um demônio como Lucas Malta. Não se precipite, não se afobe. E mais importante, não deixe a vontade de vingança te cegar.
- Sim, eu falei aquilo sem pensar.
- Sei que é delicado. E é um sentimento legítimo, mas se eu vou ser sua guia nisso tudo você tem que me prometer que não vai fazer nada imprudente.
- Eu prometo, Catharina. - Menti.

Almoçamos juntos. E Catharina me explicou a grande responsabilidade que seria servir a Ordem dos Sacerdos e que estava feliz por eu ter aceitado meu chamado. Falou ainda que eu seria um grande membro para a Ordem e estava desfiando a grandes feitos. Que irônico foi o destino.

- Ainda bem que consegui trazer o Gathen aqui cedo. Precisamos deixar você pronto para ir ao templo as 18h.
- Eu ia te perguntar sobre isso aonde é esse “templo” que você fala tanto. Vamos precisar viajar?
- Não, Pablo, o templo é logo ali no Centro do Rio. - Ela estava quase rindo.
- Existe um templo no Centro e eu nunca soube?
- Hahaha, você com certeza conhece, mas talvez com outro nome.
- Qual?
- Igreja Nossa Senhora da Candelária.


E foi lá, alguns meses depois que eu me ordenei padre.

Um comentário: