sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Ver012



A tarde se arrastou. Desde que Catharina havia me dito que sairíamos de casa às 17h parece que os ponteiros do relógio haviam se tornado preguiçosos. Ansiedade? Talvez, confesso ser um ansioso compulsivo. Mas atribuo minha impaciência à vontade de vingança cega que me acompanhava e, é verdade, também me incentivava a ideia de que, se eu me ordenasse, talvez recebesse mais alguma visita da Carol.

Eu estava sentado na janela do meu quarto ainda desarrumado quando Catharina chegou. Já devo ter escrito algumas vezes sobre a beleza dela, mas lembro bem que neste dia ela conseguia estar mais encantadora. Não conseguiria aqui listar motivos específicos para isso, pois não havia. Poucas vezes vi Catharina fora de seu padrão de roupas coloridas entre o azul e o branco, essa foi uma delas. Seu vestido era de um verde tão escuro que à primeira vista me pareceu chumbo, ele era justo ao seu tronco e solto após a cintura, o cabelo loiro estava com cachos nas pontas e duas delicadas mechas da frente se encontravam em sua nuca numa trança discreta mas firme. O ambiente ficou mais quente depois que ela entrou

.- Nossa, você se arrumou!- Vou ignorar sua surpresa e tomar isso como um elogio, Pablo. Muito obrigada. Agora vamos, não esqueça sua mala.

Obedeci e fomos em direção à estação de metro da Siqueira Campos que fica há poucos metros da minha antiga casa. Descemos os degraus da estação Entrarmos no vagão do trem antigo que passou, viajamos de pé. Senti uma pontada uma crescente na cabeça pouco tempo depois que o trem começou a andar. Catharina sempre ficava distraída quando estava em lugares com muitos mortais, ela só percebeu minha condição quando me apoiei em seu ombro.

- Pablo! Pablo, você está bem?! O que houve?!
- Não sei - eu disse ofegante - de repente uma dor de cabeça muito forte…como se estivessem fazendo pressão dentro da minha cabeça! Estranho…eu nunca fui de enxaquecas.
- É. Muito estranho.

A dor era exponencial. As marteladas com certeza estavam ficando mais fortes. Era diferente daquela sensação irritadiça de arranhões no cérebro que descrevi algumas páginas atras. Não, desta vez eu sentia literalmente pancadas.

Catharina pôs a mão na minha cabeça baixa e sussurrou algumas palavras em latim dos meus ouvidos. A dor não passou, mas ao menos parou de aumentar. A sensação era de que meu crânio poderia explodir a qualquer momento.

- Estação Largo do Machado. - disse a locutora.

Ela se desvencilhou de mim, somente por um momento, mas eu teria caído não fosse o cilindro de ferro que fica no meio dos vagões do metrô. A luz pressionava dolorosamente meus olhos, não conseguia deixá-los abertos por muito tempo. Em um dos intervalos nos quais a dor se mostrava suportável vi minha amiga abrir a mala que eu, há muito, havia deixado cair no chão. Já estava de olhos fechados novamente quando Catharina pegou o terço que eu havia tocado mais cedo e enrolou na minha mão esquerda.

Calor.

Senti um calor pungente que se espalhou forte não só pelo meu braço como também pelo meu corpo inteiro. Em segundos já não havia dor e eu estava recomposto. Só então pude notar os rostos preocupados dos outros passageiros. Catharina perguntou se eu estava bem e eu afirmei com um aceno mas não olhei para ela, minhas atenções estavam no terço que ainda pulsava na minha mão. Agora ele, que era de prata, brilhava num dourado intenso. Olhei perplexo por alguns instantes, alguns dos passageiros mais curiosos começavam a conversar entre si.

- Estação Glória. - disse novamente a voz metálica da condutora.

Catharina fechou minha mala e a levou para a plataforma, fez sinal para que eu fosse com ela. Algumas outras pessoas também saíram e o trem seguiu em direção à Tijuca. Não posso dizer que estava completamente recuperado, mas afirmo categoricamente que minhas faculdades mentais já funcionavam sem problemas. Depois que o ímpeto de seguir Catharina passou percebi que, se nosso destino seria a Candelária, deveríamos ter permanecido no trem até a estação Uruguaiana.

- Catharina, acho que você errou a estação. Bom, até dá para irmos a pé, mas pela hora acho que vamos nos atras...
- SHH! - Catharina pediu silêncio e eu percebi que ela estava procurando alguém ou alguma coisa na multidão que saiu só vagão junto conosco que agora já se espalhava pela plataforma - Pablo, me ajude com isso. Por favor se concentre. Como Gathen disse, os artefatos que você recebeu são bastante especiais. O terço que lhe serve de proteção também avisa quando existe algum demônio por perto. - apontou para o terço na minha mão que ainda brilhava, mas agora menos intenso - Vamos evitar qualquer ataque, claro, mas precisamos saber quem te atacou para eu poder te proteger. Achei que te tirando do trem estaríamos livres dele, mas acredito que ele desceu conosco.
- Bom, de qualquer jeito a trilha está esfriando.

O brilho foi esmaecendo até voltar ao prateado natural. Percebi que o nervosismo da minha amiga também sumia, apesar dela ter dito que não queria arriscar mais algumas estações num lugar fechado como o metrô. Iríamos seguir a pé.

O bairro da Glória é bem pequeno e antigo. Sua decoração se dá por comércios de rua tradicionais e casarões de dois séculos atrás bonitos, mas malcuidados. Caminharíamos cerca se meia-hora até chegarmos à Candelária, por isso apressamos o passo.

Muitos daqueles casarões que eu comentei estão abandonados hoje em dia e foi ao passar pelas portas de um destes que senti duas mãos fortes me puxando para seu interior. Foi rápido e inesperado, em menos de um segundo me senti impelido contra o assoalho quebrado e sujo do casarão. Ouvi uma risada gutural e os passos da Catharina logo atrás. Levantei e vi o bolso esquerdo de minha calça brilhando novamente, mas antes que pudesse enrolar o terço na minha mão um grito de Catharina me avisou de um golpe que não pude evitar.

Ele não era grande. Não, era menor que eu, inclusive. A forma sem dúvida era humana mas havia peculiaridades gritantes que me aterrorizaram à primeira vista. O corpo magro tinha os braços ligeiramente desproporcionais, de modo que as garras que estavam no lugar dos seus dedos chegavam a tocar o final das coxas, a pele era de um cinza desbotado. Nos olhos não havia pupila, apenas um mar negro e seus dentes eram semelhante aos de um tubarão. 

Foi a primeira vez que vi um demônio em sua forma original.

Permita que eu pontue algumas coisas. A maioria das castas de infernais que estão neste mundo têm o tipo físico semelhante ao nosso ou apenas com ligeiras diferenças, Carol por exemplo, tinha os caninos protuberantes. A aparência os ajuda a se misturar e levar uma vida aqui. Acontece que existe ainda um número imenso de criaturas do plano inferior que, como era o caso deste berne, precisavam se valer de artifícios para transitar entre os humanos. É por isso que a maioria dos demônios não-humanóides quase nunca sai do inferno. Ah, bernes também são incapazes de falar.

Bernes são diferentes. Berne é um tipo de demônio que tem a habilidade física de mudar sua aparência. Um inseto, um animal, planta e até mesmo um ser humano. Seus poderes, entretanto, não se limitam somente ao físico, dores e doenças que não parecem ter nenhuma causa explicável pela medicina quase sempre tem participação deste tipo de demônio. Bernes se alimentam de sofrimento humano.

Um de seus longos braços me atingiu em cheio no ombro esquerdo e me fez dar quatro passos para trás. Era um casarão escuro e eu não conseguia ter certeza de onde ele estava. Catharina veio correndo e se pôs ao meu lado. Senti-me envolto pela mesma película branca protetora que ela havia usado para me defender no dia que vi Carol pela primeira vez.

- Pablo, me ouça atentamente! Essa criatura é um berne, um demônio letal. Você ainda não tem domínio dos seus poderes para enfrentá-lo. Siga, estritamente as minhas instruções. Primeiro enrole o terço na sua mão, ele vai reagir ao seu toque e avisá-lo quando ele estiver se aproximando. Isso irá atrasá-lo.

Fiz como ela disse.

- Segundo: abra a maleta e pegue o frasco de água benta. Eu vou te proteger, então não se preocupe, assim que ele sair das sombras despeje a água benta nele em forma de cruz.

Tirei o pequeno vidro como ela me disse para fazê-lo e, como o rosário, ele reagiu a meu toque. A agua começou a borbulhar, como se estivesse sendo fervida, mas a temperatura não subiu.

Outro rugido do berne.


- Catharina, é normal água benta estar borbulhando?
- Pablo, “água benta” não passa normal carregada pelo espírito de quem a usa. Na verdade, todos os equipamentos dessa mala são objetos comuns, a não ser que sejam manuseados por você. Agora fique atento, não sei se vamos ter uma segunda ch…AAAAH!

Catharina se distraiu ao falar comigo e o berne a atacou, basicamente o mesmo ataque dirigiu a mim no metrô. Não esperei para correr em sua direção, o terço na mão esquerda, o frasco com agua benta na direita. Os gritos de Catharina eram insuportáveis.

Ao chegar próximo ao meu inimigo senti como se dois pregos perfurassem meus pulsos, já não dominava meus dedos que se abriram deixando meu terço e o frasco caírem no chão. O líquido se espalhou rapidamente pelo assoalho empoeirado do casarão.

Conforme Catharina gritava e ia perdendo forças o monstro ia ficando mais forte, percebi que estava maior, inclusive. A dor em meus pulsos se aliviou um pouco, ele estava focado nela. Apesar de estar longe de mim por alguns metros seus longos braços permitiram que suas garras arranhassem do meu ombro ao meu peito.

Catharina parou de gritar, estava desacordada pelo ataque. O demônio agora tinha toda a sua atenção em mim. Mais forte e maior que quando nos levou para o casarão me empurrou forte e eu caí de costas. Minhas mãos encontraram alguns gravetos que estavam esquecidos no chão sujo da casa abandonada. Lembrei do que Catharina me disse e, mais uma vez apostei todas as minhas fichas numa única chance.

O berne vinha desenfreado em minha direção. Começou novamente me infligir uma forte dor de cabeça.em minhas mãos eu tinha dois gravetos e, não importa o que ele fizesse eu estava empenhado em não soltá-los. O demônio enterrou uma mão entre os meus cabelos e me levantou pela cabeça com seus dedos enormes. Me trouxe para perto de si e eu estava face a face com ele quando senti seu grunhido nojento.

Minhas mãos se uniram bem em sua testa, os pequenos gravetos em forma de cruz. Nada aconteceu. A criatura estava um tanto quanto surpresa com meu golpe e ponderou um pouco seu ataque. Estava perdendo minhas esperanças quando os toscos pedaços de madeira começaram a brilhar e queimar a pele do meu inimigo.

Ele soltou minha cabeça e tentou fugir, mas eu estava empenhado em acabar com ele ali mesmo. Aproveitei que estava enfraquecido e com a palma de minha mão esquerda continuei pressionando os gravetos em cruz contra sua fronte enquanto a direita trazia a parte detrás de sua cabeça na direção deles.

A agonia e os ruídos guturais não me impediram de ir até o final. Conforme ele enfraquecia, mais força eu fazia e só parei quando percebi que ele já estava desfalecido. Ao tirar meus braços doloridos de sua cabeça vi que meu crucifixo improvisado estava alguns centímetros enterrados em sua face.

Foi assim que eu matei meu primeiro demônio.

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