sábado, 11 de outubro de 2014

Ver009



Como eu disse, um dos motivos pelos quais Catharina me procurou em primeiro lugar, foi a minha capacidade de sentir, quase fisicamente, sempre que há a influencia de outros seres sobre uma vida humana. Você pode chamar de intuição, se quiser. Após ter me ordenado passei a aprender com administrar melhor a perturbação e a inquietude que me dá sempre que passo por uma situação dessas, mas ainda a sinto. É como se um ruído constante de unhas sendo friccionadas contra um quadro negro estivesse em crescente no seu cérebro e você não pudesse desligar. 

A porta não se abriu, mesmo meu dedo tendo ido a campainha repetidas vezes. Resolvi descer e falar com o Danilo, o porteiro do prédio, perguntar se ele tinha visto meu pai sair. 

- Seu Luis não saiu não. Ele chegou ontem de noite de um vôo pra fora, eu acho. Olha, - e olhou para a câmera num monitor que tinha em sua mesa - o carro está até na garagem.
- Eu pensei que ele estaria em casa também. E esqueci a chave na casa de uma amiga e estou tocando mas parece que não tem ninguém em casa para abrir pra mim. - fui me encaminhando para subir as escadas de novo - Bom, obrigado Danilo. Acho que vou tentar de novo.

Então ele disse algo que caiu sobre mim como um balde de água fria.

- Sabe, lembrei agora que seu primo passou aqui ontem bem tarde e eu também não o vi sair.
- Meu primo? - eu disse me voltando para ele.
- É...um alto, com cabelos e olhos bem escuros. Como era mesmo o nome dele? AH, Lucas! Isso mesmo, seu primo Lucas passou aqui ontem, muito simpático por sinal, mas eu estranhei a hora, já era bem tarde. Eu estava cochilando um pouco, não vamos contar isso para a dona Barbara ok? - Dona Barbara era a síndica do condomínio - Mas eu estava cochilando quando ele tocou ali nas portas de metal e acabou me acordando com um susto. Muito educado seu primo, mesmo após eu abrir a porta ele ficou de pé lá fora, só entrou quando eu falei que ele poderia subir. O tipo de coisa que a gente não vê mais hoje em dia, não é mesmo? Como ele chegou bem tarde deve ter ficado de papo com seu pai, vai ver os dois ainda estão dormindo.
- É...talvez.
- De qualquer jeito - abriu um armarinho que tinha a sua esquerda - toma aqui uma chave reserva, pelo menos você não vai ficar do lado de fora esperando.
- Ah, obrigado.

Me despedi dele com a chave na mão, mas eu já não estava com nenhuma vontade de entrar em casa. Agora eu suava, cada passo dado me rendia um pensamento novo que tentava explicar o que poderia ter acontecido na noite anterior. O mau pressentimento havia se transmutado em preocupação.

Eu nunca tive primos.

A porta do meu apartamento, que me acostumei a atravessar sem me importar muito por anos, agora era um objeto de contemplação. A examinei, pela primeira vez prestei atenção na porta. Nunca havia reparado  as três lascas que ela tem na base, ou mesmo que a maçaneta está oxidada. Ali, de pé olhando para a porta eu tive medo. Não de algo ou de alguém em específico, eu tive medo de estar certo. E, infelizmente eu estava.

Era um dia de sol mas, ao entrar no apartamento, tive a sensação de um frio cortante. Chamei pelo meu pai que não respondeu. Comecei a andar pela casa devagar, não sabia o motivo de tanta cautela somente sentia que deveria te-la. Percebi que o frio que eu estava sentindo não era de mesma intensidade em todos os pontos da casa, conforme mais eu me aproximava do interior do apartamento, maior era a sensação.

No meio do pequeno corredor que dava para os quartos ficava o banheiro. Ao tocar sua maçaneta minha mão sentiu todo o calor sugado de si. Recuei. Não sei dizer quanto tempo fiquei parado juntando cada caco de coragem que eu tinha para tomar uma iniciativa. Quando finalmente resolvi agir, percebi que aquela sensação ruim, os arranhões no quadro negro haviam parado. Talvez, no meu subconsciente, eu já soubesse.

Não foi frio o que eu senti no meu apartamento naquele dia, foi morte. Infelizmente com o passar dos anos fiquei mais habituado do que queria com seu toque gelado.

Talvez eu não consiga descrever com toda a precisão o horror que vi naquele banheiro. O chuveiro estava aberto, não sei por quanto tempo, o corpo do meu pai desfalecido embaixo da agua que caía, havia marcas bem escuras em seu pulso e pescoço. Sua pele estava enrugada e muito pálida, os olhos abertos, olhando fixamente lugar algum. Não tentei controlar as lágrimas. Corri e abracei seu corpo, tentei animá-lo. Em vão.



+++

É uma sensação estranha quando se consegue sentir toda esperança morrendo.

Depois de todos os processos legais que eu precisei passar, e ir a delegacia mais vezes em uma semana do que eu iria o resto da vida, foi aberto um inquérito investigativo sobre o assassinato do meu pai, que eu já sabia que não daria em nada. O Danilo, o porteiro, foi demitido e estava sendo investigado como cúmplice. Pobre homem.

O apartamento não era muito grande, mas seus cômodos pareciam enormes agora que eu estava sozinho em casa. Meus dias seguiam um roteiro repetitivo entre meu sofá e minha cama. Eu comia pouco, saía de casa menos ainda. Por não ter nenhum familiar próximo, não precisava me preocupar com visitas que eu não queria receber.

Mesmo assim a campainha tocou. Não estava com vontade de atender, mas vendo que a minha visita não ia desistir, resolvi levantar. Estava com um discurso preparado para afugentar quem quer que fosse na ponta da língua, mas assim que eu abri a porta dois braços me envolveram muito forte, nem tive tempo de reagir.

Catharina tinha aprendido a abraçar.

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