quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Ver007



Ela só podia estar brincando.

Minha cabeça se pôs a tentar encontrar algum argumento para negar a afirmação que Catharina tinha acabado de fazer. Não conseguiu. Mas a idéia daquela garota ser uma vampira simplesmente não era aceitável. Catharina me examinava, confuso, tentar formular alguma frase que não saiu.

Depois de um tempo ela sorriu curiosa, a agressividade já havia passado. Ao terminar o curativo na minha mão esquerda ela me disse:

- Por que tanta surpresa?
- Acho que você não entendeu bem a minha pergunta - expliquei - o que eu quis dizer foi que essa suposta casta de demônios que você chama de Upyr tem muito em comum com os vampiros dos livros e histórias de terror.
- Não, eu entendi perfeitamente, Pablo. Acontece que “Upyr”, “wapierz”, “vampiro”…são todos nomes da mesma classe de infernais. Criaturas que são tão antigas quanto a própria criação dos mortais. Por estarem neste plano com os mortais há tanto tempo que julgo ser normal que muitos de vocês saibam, ou ao menos suspeitem, da existência deles. O que leva de novo a minha pergunta: por que a surpresa?
- Catharina, isso não faz sentido! - eu me recusava a acreditar - Quer dizer, eu a senti. Senti seu toque...
- O toque frio de cadáver, a pele branca como gesso. Olhos em fogo e mãos inexplicavelmente fortes visando única e exclusivamente a sua mão, que estava sangrando. Parece com algum vampiro dos seus livros?

Não respondi.

- Os mortais costumam saber muito pouco sobre o plano superior, Pablo. Os demônios Upyres são uma exceção. 

Ela fechou a caixa de curativos e foi guardá-la. Pus a camisa de novo e fui em direção a pequena varanda que havia no apartamento de Catharina. Ainda sentia o perfume dela em mim. Não contei para Catharina mas meu único pensamento desde que a vi indo embora era encontrar com Carolina de novo.

- Eu poderia jurar que ela não sai da sua cabeça desde a praia. - não tinha visto Catharina voltar, mas ela estava do meu lado. Trazia consigo um livro bem antigo que, não fosse seu toque delicado, se desmancharia nas mãos.
- E ler mentes também é uma habilidade dos anjos da guarda, é?
- Alguns celestes conseguem tem essa habilidade - ela disse com um sorriso triste - mas não os Fravashi. Eu trabalho com corações como o seu ha séculos Pablo, e sei os efeitos que ela pode causar neles. Sei que voce está atraído fisicamente por ela, mas esse é o menor dos problemas. - seu tom era severo - Você também está ansioso, inquieto para estar na presença dela, novamente. Pablo, ela mataria você se tivesse a chance.
- Não me senti em perigo com aquela garota, Catharina.
- Pare de chama-lá de “garota", ela é um demônio. Uma das criaturas mais baixas que já desceu até aqui. Carolina LeBion é uma serpente e eu trouxe este livro para te provar isso.

Ela abriu o livro, as páginas vinham escritas numa língua que eu nunca vi.

- “No capítulo primeiro do livro primeiro, - ela começou-  no começo de tudo. No Genesis, versículo 27 se le: ‘Yahweh criou o homem à sua imagem e semelhança, criou o homem e a mulher.’”
- Catharina, você realmente vai voltar até Adão e Eva para me explicar alguma coisa sobre Carolina?
- Fique calmo e escute, por favor. - continuou - “Algo peculiar é visto logo no capítulo segundo, versículo 18 onde se lê Yahweh dizendo para Adão: ‘Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada’. Mas é apenas no versículo de número 22 que Eva é criada: ‘Da costela que havia tomado do homem, Yahweh em toda Sua compaixão, criou uma mulher e levou-a para junto do homem’”

Ela levantou os olhos do livro. A expressão para mim era reticente. Senti como se tivessem me contado uma piada que eu não entendi. Não conseguia ver ligação nenhuma entre esses fatos e Carolina.

- Compreende? - Ela me perguntou como quem incentiva uma criança a dar os primeiros passos sozinha.
- Desculpe, mas não. Quer dizer, eu já sabia como Eva havia sido criada mas…
- Mais atenção, Pablo! O que acabei de ler para você são registros que mostram a existência de alguém antes de Eva, alguém que foi cortado dos registros bíblicos. Houve uma primeira esposa de Adão que Deus fez questão de esquecer. - Suspirou e seguiu com a leitura -
“No versículo seguinte do mesmo livro é possível ver o homem dizer com satisfação e em agradecimento a Yahweh: ‘Esta, sim, é o osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada!’”
- “Esta sim”…
- Exatamente, Pablo. "A primeira”, como gosta de ser chamada, foi criada ao mesmo tempo, e da mesma substancia que Adão, o barro. Foi feita com irresistível beleza e afiado intelecto. Geniosa e lúcida acima de todas as coisas. Por não aceitar a posição que Adão sempre tendia a tomar como ser superior, ela causava brigas seculares com ele nos Jardins do Éden. De luxúria insaciável, a maior das discussões se deu quando ela se recusou a ficar por baixo de Adão durante o ato da relação. “Porque me devo deitar-me embaixo de ti? Porque devo abrir-me sob teu corpo? Porque ser dominada por ti?” dizia ela, e ao convocar o próprio Criador e contar a ele suas indignações teve apenas silencio como resposta. No outro dia, “a primeira” fugiu do paraíso chegando ao profano Mar Vermelho. 

Esperei que ela continuasse, mas Catharina não voltou a falar. Estava perdida em pensamentos, como se tivesse esquecido que estava contando aquilo para mim. Precisei tocar seu braço para acordá-la.

- Desculpe - ela me disse - este assunto trás memórias delicadas. O que eu queria que voce entendesse é que Carolina, por mais sedutora que pareça, é extremamente traiçoeira. Se tivermos sorte, vamos ficar um bom tempo sem vê-la de novo.
- O que aconteceu? - a curiosidade me corroía - Depois que ela fugiu do Paraíso, quer dizer.

Catharina suspirou.

- Adão achou que havia sido apenas mais uma discussão como as tantas que tiveram anteriormente. Demorou a perceber que sua esposa não voltaria. Ao atentar para tal fato pediu a Yahweh que a trouxesse de volta. Ele enviou três Virtudes para buscar "a primeira" no mar profano.
- Virtudes?
- Perdão, deixe-me explicar melhor. “Virtude” é o nome de outra casta de seres celestes. Têm extrema pureza e força e são responsáveis pelo curso de grandes eventos, como foi o caso. O Criador recorre as Virtudes quando a missão é realmente importante.
- Então eles são como você?
- Nossas funções são bem diferentes, - Catharina disse com humildade - os níveis de poder nem se comparam. Virtudes quase nunca se misturam com os mortais ou descem para esse plano. Eu mesma vi poucos deles na minha existência. Mas voltando, os três escolhidos para essa missão se chamavam Sanvi, Sansavi e Samangelaf e eles partiram do Éden com ordens claras: era para tentarem trazer a mulher de volta mas a maior lei universal ainda estava em vigor.
- Lei universal?
- Sim, o livre-arbítrio, Pablo. Ela poderia escolher se voltaria ou não. Ao chegar lá, mesmo os anjos ficaram encantados com tanta beleza. Insistiram para ela voltar. Sansavi chegou a tocar seus cabelos vermelhos, não há outro registro de uma Virtude tocando um mortal. Apesar dos apelos ela se manteve orgulhosa de sua decisão. “A primeira” não voltaria e forte, disse que assumiria a responsabilidade pela sua decisão.
- Eu tenho uma pergunta.
- Pode dizer.
- Porque você está evitando dizer o nome dela?
- Porque, Pablo, o castigo de Yahweh para ela foi severo. Após a volta das Virtudes, Ele pronunciou o castigo que ela levaria por negar o Paraíso. Não era mais uma mulher, se tornaria um demônio, um dos primeiros. Uma imortalidade proibida de andar sob o sol, ela estava condenada a se alimentar apenas de sangue, nunca mais seria bem-vinda em ambientes sagrados e sofreria sempre que estivesse na presença de qualquer objeto tocado pelo bem. Seu nome era Lilith.

Houve um bom tempo de silêncio entre nós. Agora sim eu via de onde os vampiros da lenda tinham realmente saído e percebia o perigo que corri horas atras, praticamente me dando de bom grado para aquela figura que me encantou tão facilmente. Foi Catharina quem voltou a falar.

- Nossa conversa me fez lembrar de outro nome que é atribuído para a corja de criaturas como Carolina.
- Qual?
- Filhos de Lilith.

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