sábado, 13 de setembro de 2014

Ver005



Ainda desnorteado pelo bilhete de Máira me peguei pensando como tudo havia mudado de um dia para o outro. Aquela criatura tinha o meu pai que, desde a morte da minha mãe, era minha única família. Num ímpeto, ainda absorto em meus pensamentos, levantei e fui em direção a porta.

Tinha esquecido completamente que Catharina estava ali comigo até ela se por na minha frente e dizer coisas que eu não registrei. Me lembro de ter forçado passagem mas ela era extremamente forte.

- Catharina, o que você está fazendo?! Vamos agora atrás dela!
- Atrás dela, Pablo? Atrás dela AONDE? Não sabemos aonde ela está agora. Temos que ser pacientes. Vamos nos encontrar com ela, mas o que está me preocupa agora é aquele "Estamos".
- "Estamos"? Do que você ta falando? Catarina, a gente precis..
- Nós precisamos é manter a calma porque ela não está sozinha, não vê? "Estamos com seu pai". Máira é bem poderosa e já seria problema para nós dois. Ela está acompanhada e não sabemos de quem ou quantos. Entendo sua ansiedade Pablo, mas minha missão é proteger você. Não vou deixar você fazer nada precipitado.

Pela primeira vez desde que nos conhecemos Catharina me deu uma ordem explicita. Pensando agora, todas as  poucas vezes nas quais ela fez isso tinha razão. Desabei em uma cadeira da mesa da cozinha ainda tentando um chão que já não encontrava. Catharina me deu um copo d’agua, quando eu claramente precisava de algo mais forte, e saiu para se informar e buscar instruções de como deveríamos agir. Disse que voltaria antes das seis horas.

Já passava das duas quando eu finalmente tive animo para levantar da cadeira onde estive sentado. Caminhei em direção ao meu quarto mas antes entrei no quarto do meu pai sem perceber, quando dei por mim já estava ali, mexendo no armário dele onde achei o que estava procurando. Uma caixa de sapatos antiga aonde sabia que ele guardava antigas recordações de quando eu era criança. Em meio a boletins antigos, alguns desenhos, uma carta de dia dos pais com garranchos semi-alfabéticos eu encontrei uma fotografia. 

Na foto estava eu, com uns oito anos sorrindo com tudo que eu podia sentado nos ombros do meu pai. Uma bandeirinha na mao e uma camisa do Vasco maior que eu no corpo. Foi a primeira vez que meu pai me levou num jogo. Ao olhar para aquela foto eu consegui o foco que eu precisava para sair um pouco daquele desespero atônito e me organizar para fazer alguma coisa. Fui para o meu quarto com a fotografia na mão e liguei meu computador. Aquela coisa deveria ter um ponto fraco e se tivesse, eu ia encontrar.

                                                                           
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O relógio marcava cinco horas quando acabei de me arrumar. Eu tinha um plano que tinha me deixado confiante, ainda que, analisando friamente hoje em dia eu consiga analisar inúmeros erros primários. Conferi se tinha pego tudo que eu precisava: crucifixo, terço e a maior faca que eu encontrei na cozinha, escrevi um bilhete para Catharina me desculpando por não esperá-la e saí.

Saí sem saber que seria naquela noite que eu a veria pela primeira vez.

Depois de alguns quarteirões uma chuva semelhante a está que está caindo hoje passou a acompanhar meus passos mas eu não me importei, passava o plano em loop na minha cabeça. Cheguei à praia pela segunda vez naquele dia. Dessa vez a atmosfera estava bem diferente, nuvens pesadas escureciam o céu e jorravam toda água que podiam. Um vento insano corria com pressa na direção contrária à minha, como se fugisse e no meu caminho até o Arpoador eu não vi ninguém. O sol não se pôs esse dia, ele se escondeu.

Ao chegar no lugar marcado eu já sentia minha confiança mais frágil, mas procurava não ligar e me convencer de que, sim, ainda poderia conseguir salvar o meu pai.

- AABA! - gritei com todo ar que pude reunir - ESTOU AQUI! SOZINHO! COMO VOCÊ PEDIU!

Nada aconteceu.

- ESTOU AQUI! APAREÇA SUA FILHA DA PUTA!

Achei que não teria resposta de novo quando, pouco antes de abrir a boca para gritar novamente eu sinto uma presença forte do outro lado da pedra. Ouço um riso debochado.

- HAHHAHA, você está adiantado queridinho. Mas tudo vem. O sol já foi embora, mesmo. Você é uma gracinha ansioso para morrer. - e eu a vi, pouco a pouco saindo das sombras que a pedra fazia.
- Onde está o meu pai?!
- Seu pai?! Você realmente acreditou nisso, nanico? Eu não estou com seu pai, seu idiota! Sabia que você era ingênuo o bastante para acreditar na minha mentira. Todos vocês são.
- Mas...então.. - sentia um estranho alívio que rapidamente foi se transformando em horror, na sensação de ter me precipitado.
- Entenda uma coisa, eu não precisava do seu pai. Nunca precisei. Eu poderia entrar na sua casa, torturar você dormindo. Te prender e fazer o que quisesse com você. 
- Porque?...
- Cala a boca e me escuta! Eu poderia fazer tudo isso, mas não queria me divertir sozinha, precisava te tirar de casa pra isso. E você veio como um cachorrinho quando eu chamei.

Comecei a recuar. Um passo, dois. Dei as costas para ela e, quando ia dar o terceiro, ela já estava na minha frente. Seu soco foi forte, só entendi o que tinha acontecido quando bati minha cabeça no chão. Nesse momento me dei conta de que ela não estava sozinha. Não, ali escondia nas sombras da noite havia um outro vulto mas antes deu pensar muito nisso um forte chute me atingiu na barriga.

- Eu falei que você ia pagar pelo que fez, nanico! Ninguém me fere como você e tem um final feliz. Carolina, vem cá! Estou quase acabando com ele!

Carolina. Era ela a figura que via ali, imóvel. Apesar de não conseguir vê-la com clareza e estar sofrendo com os fortes golpes da Aaba, Carolina chamava minha atenção só pela sua presença. Minha esperança começava a falhar quando vi uma luz branca me envolvendo. Os chutes pararam.

- Máira, pare com isso. Agora.
- Ah, Catharina me poupe! Você acha mesmo que pode fazer alguma coisa?! Você não pode me machucar, sabe disso. Você é fraca e não vai poder esconder vocês dois sob esse escudo por muito tempo. 

Catharina se virou pra trás e me olhou no chão com piedade. 

- Vou agüentar o tempo que precisar. Eu contatei a ordem, Aaba. Eles estão vindo.
- Porque você se importa tanto com esse humano, afinal?
- Ele é um sacerdo, Máira. Tem poder para te estraçalhar, só não sabe disso ainda.

Eu pude ver que a notícia deixou a demônia perplexa. Consegui reunir forças para levantar e apontar o crucifixo para Máira por trás de Catharina. Ela riu com desdém, mas depois notou a faca na minha mão e fechou o rosto. Ela sabia o que eu ia fazer. 

Abri a palma da não direita e nela fiz um fundo corte do dedo indicador ate o pulso deixando-a ver toda cena. Não, eu não tinha perdido a razão, só estava apostando no único ponto fraco dela que eu pude encontrar. Acontece que Aabas podem ser cruéis e poderosos mas, por algum motivo, estas criaturas tem uma automática repulsa ao sangue humano.

Catharina estava de costas e por um momento não entendeu o que tinha acontecido. Máira jazia encolhida no chão quando Catharina se voltou pra mim e viu o dedo vermelho que eu tinha levado à boca após sentir que o perigo havia passado. Ela recolheu seu escudo com uma expressão entre o alívio e o orgulho mas essa expressão não durou muito tempo. Rapidamente vi horror em seu rosto novamente e, frações de segundo depois disso um vulto vermelho passou por mim numa velocidade impensável. 

Catharina foi ao chão.

Eu me virei e a vi. A vi pela primeira vez fora das sombras. A pele doentiamente branca contrastava com o cabelo ruivo, não o ruivo banal que se encontra nas cabeças de algumas garotas hoje em dia. O ruivo dela era como fogo, pulsava. Os lábios eram tão vermelhos quanto o cabelo. Vestia um básico vestido preto mas que caía no seu corpo como se tivesse sido desenhado para ela. Seu olhos eram intensos. Escuros demais, profundo demais. Bonitos demais.

Por um momento eu esqueci de todos os golpes que havia levado, todas as preocupações também tinham ido. Minha única preocupação era continuar olhando para aquela figura. Não estava hipnotizado como foi com Máira. Estava entregue à ela, o que é bem diferente.

Eu disse que Catharina era extremamente bonita, Máira era incrivelmente sedutora. Mas essa garota fazia as outras duas parecerem os rostos comuns que vemos todos os dias andando com pressa pela Presidente Vargas.

Ela sorriu para mim e eu pude ver seus dentes. A próxima coisa que me dei conta era ela estar em cima de mim com as mãos ávidas buscando a minha mão cortada.

5 comentários:

  1. Já to esperando o vers. 006. Não sei se já falei mas, adoro quado tu descreve pedacinhos do RJ. Tu escreve muito bem, escrever bem assim é um dom. :)

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    1. Ah, fico feliz! Voce foi a primeira pessoa a comentar aqui, haha.

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