Meu primeiro reflexo foi pegar
Vinicius como pude e correr para perto de Victor. Gabriela, estava na parede
oposta ao monstro que urrava de dor. A coruja, ainda pousada no busto de Athena
parecia fazer parte do concreto que formava a estátua. Imóvel.
Tive pouco tempo para olhar a ave,
mas por ter facilidade em identificar detalhes me foi o suficiente. A plumagem
era marrom-acinzentada, o tamanho era o mesmo de um dos meus braços. Duas
sobrancelhas que poderiam ser confundidas com cifres emolduravam os olhos que
eram de um azul-piscina antigo. Suas pupilas eram dilatadas, grandes e escuras.
Davam a impressão de conseguir olhar a minha alma. Como Carol também conseguia.
O possuído, agora de quatro,
continuava fazendo bastante barulho, mas a coruja permanecia ali empedrada, me
analisando. Victor percebeu que eu era o único em condições de ajudá-lo a se
aproveitar do momento de vulnerabilidade do inimigo e caminhou em direção a ele
me dando um leve empurrão com os ombros. Olhei para a coruja pela última vez. No
bico ainda manchado de sangue, pedaços de tecido dos olhos que ele arrancara
para me salvar. Foi ele quem desviou os olhos grandes primeiro, mas não sem
antes me analisar de cima abaixo. Parecia ter tido ordens para só sair de lá se
tivesse certeza absoluta que eu estava bem. Quando se convenceu, levantou voo e
saiu pelo mesmo lugar que entrou.
- Traga aquela cadeira até aqui e
tranque a porta. - Victor disse enquanto passava o polegar úmido de agua-benta
na própria testa - Sem demora!
Trouxe uma cadeira de madeira
maciça que jazia tombada num dos cantos do aposento. O assento de veludo grená
estava bem castigado pelo tempo e havia marcas de mofo, mas julguei que as
pernas seriam fortes o bastante para aguentar o peso de um idoso. Victor passou
uma espécie de fita-adesiva resistente que tinha em sua mala algumas vezes pelo
tronco do velho desacordado. Eu o ajudei fazendo o mesmo com seus braços.
Quando terminamos, fui em direçao
aos meus companheiros. É verdade dizer que eu estava preocupado com o estado
deles, mas meu desejo maior naquele momento era sair de perto do que eu já
acreditava ser um cadáver. Certo de que toda a luta tinha acabado e que não
seria preciso um exorcismo, dei-lhe as costas. E com uma surpresa enorme eu
escuto:
- Já está de saída, filhão?
Tudo se deu no espaço-tempo de um
passo. Eu ouvi, mas não registrei de imediato. A voz. Tinha algo de familiar
naquela voz, algo nostálgico. Acessei minhas memórias. Primeiro lembrei, depois
me questionei.
- Pai?
Não, não era o meu pai. O não-homem
agora fixava ar órbitas vazias em mim. Preso à cadeira, com os dedos como
garras fincados nela, ele ainda mantinha um sorriso no rosto. Um sorriso
desproporcional, como se a sua boca tivesse sido deslocada e os lábios rasgados
por uma navalha. Veias começavam a irradiar dos olhos ausentes e se estendiam
até as orelhas e pescoço. Meu pai falou através dele outra vez:
- Ah, agora você lembra do papai, não é, seu
merdinha?!
- Pai? - eu repeti ainda perplexo.
Ele emitiu um som que era difícil
identificar se como uma risada ou um grito. Só quando Victor passou por mim,
com a mão do terço em riste, na direção do demônio, eu entendi o motivo do
som.
- Ergo! - Victor dizia à plenos
pulmões - Draco maledicte et omnis legio
diabolica, adjuramus te per Deum! Vivum, per Deum! Verum, per Deum!
Cada fim de frase era marcado
por uma rajada de água-benta que era respondida com caretas que expunham
sua língua branca em nossa direção. Voltei a sentir frio e
desconforto. Comecei a notar outra vez o cheiro nauseante, a dor de cabeça
que martelava mais forte à cada pulso de sangue enviado ao cérebro. No
havia parede para eu buscar apoio agora, eu teria tombado sobre meus joelhos,
mas senti uma pressão se fazer no meu pescoço.
A sensação foi parecida com a que
tive mais cedo, quando sentia Carol através do terço na minha mão. Protetora,
quase que como um escudo. O mal-estar foi embora do mesmo jeito que veio e meus
sentidos foram se ajustando sem muita demora. O rosto que estava na minha
frente foi entrando em foco como se eu estivesse acordando de um
longo sono, era Gabriela. Ela já tinha se recuperado do baque, mas isso lhe
custou um grande esforço, e apesar de sua aparência ainda parecer horrível, ela
parecia satisfeita.
- Victor me avisou para te dar
isso, caso voce precisasse.
Ao olhar para baixo vi, pendendo de
meu pescoço, havia uma batina branca de tecido trançado e bordado preto dando
forma aos detalhes em sua ponta. Apesar da aparência delicada e de sua
espessura fina, ela parecia pesar sobre meus ombros.
Olhei para Gabriela com a intenção
de agradece-la, mas sua fisionomia já nao se esforçava para parecer tranquila.
Ao contrário, seus olhos me atravessavam e as maos levadas à boca serviam de
anúncio para o horror que estava refletido neles. Girei os calcanhares rápido,
como quem arranca um curativo. De uma vez, para que não perdesse a coragem no
meio do caminho.
Recuei alguns passos com a cena à
minha frente. Victor traspassava as pernas traseiras da cadeira onde tínhamos
prendido o pobre senhor com placas de metal formando um ângulo agudo,
pregando-as no chão. As dianteiras levantavam e retornavam ao piso desgastado
da casa em intervalos irregulares causados pela agitação do monstro, bem
agitado.
Eu, observando aquela cena, voltei
a tremer apesar de não sentir mais frio. Todas as minhas articulações pareciam
instáveis e doloridas. O demônio, quem quer que fosse, parara de se agitar na
cadeira. Estava placidamente sentado com os olhos vazios me fitando. Lentamente
ele abriu a boca e um som contínuo e monofrequente que parecia sair das
profundezas do próprio Inferno começou a ser expelido. Víctor continuou seu
trabalho, agora nas pernas dianteiras da cadeira, e pareceu não se importar
muito. Eu mesmo ouvia o som, que era desagradável mas não chegava a incomodar
só que, ao olhar pra trás, vi que Gabriela e Vinicius haviam desfalecido. Como
se o som lhes tivesse tirado a vitalidade.
Me envergonho da minha atuação
neste primeiro exorcismo, mas minha apatia se justificava. A voz do meu pai saindo
daquele maxilar deslocado ainda ecoava na minha cabeça e eu precisei fechar a
mão esquerda bem forte para me manter ali. Quando teve certeza de que as quatro
pernas da cadeira estavam bem presas ao chão, Victor caminhou até onde eu
estava, tirou de um de seus bolsos internos uma bíblia não muito diferente da
que eu tinha em minha própria mala.
Victor disse com seu jeito frio e
firme:
- Preciso que você se imponha. Eu
só tinha uma batina reserva, e ela está com você. Não pude proteger os outros,
e agora eles precisam de cuidados. Só posso ajudá-los se você parar de ser tão
sensível. Acorda, Pablo! Não é o seu pai ali. Seu pai está morto, você sabe
disso então não tem motivos para se deixar enganar pela criatura. Quero que vá
até lá e comece o ritual, logo me juntarei a você.
Urgente, Victor ajoelhou e começou
a procurar algo em sua valise. Eu ainda segurava a bíblia que ele tinha acabado
de me dar sem saber muito bem o que fazer com ela. Ele levanta e traz nas mãos
uma pequena caixa retangular.
- A página está marcada. - ele
disse secamente e indicou o possuído preso à cadeira.
Andei até meu adversário com os pés
pesados como chumbo. Abri a página onde o marcador estava, o texto vinha em
latim. Inseguro, olhei para trás para buscar alguma ajuda ou apoio de meu
instrutor, mas ele não prestava atenção em mim. Agora estava focado nos meus
companheiros. Dentro da caixa, eu vi quando ele abriu, havia uma quantidade
considerável de hóstias imaculadas. Sem nervosismo, mas com certa pressa, ele
pegou um punhado delas e começou a tritura-las em suas mãos, caminhando ao
redor do meu grupo de companheiros enquanto entoava uma prece baixa.
Quando olhei novamente para o rosto
sem olhos à minha frente, percebi que ele já não fazia mais aquele ruído sujo
pela boca, ela agora estava fechada. Sua arcada superior fincada sobre o lábio
inferior com força, causando vazamento de sangue que escorria pelo seu pescoço.
Pareceu não notar a minha presença ali à sua frente até que eu, desajeitado,
comecei:
- Er…ergo, draco maledicte et omnis legio diabolica….
Eu não tinha familiaridade alguma
com a língua ou o ritual, entoar aquelas palavras não parecia ter efeito algum.
Sentindo a minha insegurança crescer, o monstro começou a gargalhar a plenos
pulmões. Continuei.
- Adjuramus te... per Deum vivum, per Deum verum, per Deum...
- Garoto tolo - falava novamente
com a voz do meu pai.
- Per Deum qui sic dilexit mundum,
ut Filium suum unigenitum daret!
- Você está sozinho, garotinho. Ela não vai vir pra te salvar dessa vez.
A bíblia acabou caindo da minha mão
e o demônio lambeu os lábios sangrentos com satisfação.
- Você é fraco! Não conseguiu
salvar o seu pai. Quer saber porque ela sumiu? Quer saber onde ela está?
- UT OMNES QUI CREDIT IN EUM NON
PEREAT! - Victor veio com a próxima linha decorada em meu resgate - CESSA!
CESSA DECIPERE HUMANAS CRIATURAS!
Com ele surtiu efeito. O corpo do
velho se retraiu, e mesmo os braços atados à cadeira pareceram se enrijecer num
sofrimento mudo. Victor ofereceu a mão para que eu levantasse. Abri novamente
bíblia e estava pronto pra seguir o ritual quando o possuído recomeçou:
- Ela não vem, ela não vem…. -
baixo, como que pra si mesmo - ela não vem, nem aquele pássaro. Você está
sozinho. Sozinho no escuro.
- Me diga seu nome, infernal! -
Victor ordenou.
- Ela não vem.
- SEU NOME! - e lançou um jorro de
agua-benta no preso que gritou de dor - EXIJO SABER SEU NOME!
A fumaça causada pelo contato da
agua-benta na pele do monstro se dissipou e pudemos perceber o grito de dor se
vertendo num sorriso diabólico. Seus dedos indicadores apontados pra mim.
- Você quer saber o meu nome,
padre? Porque não se preocupa com os segredos dos seus preciosos…alunos
primeiro? HAHAHAH
- Não precisamos de nenhum Favrashi
aqui para te mandar de volta para o inferno, sujo! Não importa se Catharina vem
em nossa ajuda ou não.
- Catharina? Não, bom padre, eu não
estava falando de nenhum anjo. - mesmo sem olhos era possível definir sua
expressão irônica - Quem não se chama Carolina.
Eu empedreci. Victor desviou os
olhos do inimigo pela primeira vez desde que começamos o ritual, olhando para
mim em dúvida, pedindo por uma resposta com as sobrancelhas questionadoras.
- Ah, “filho”. O que foi? Você não
contou ao professorzinho da sua amante vampira? Deve ter sido dificil inventar
uma desculpa para essas cicatrizes, não?
- Calado. - Victor disse sem tirar
os olhos de mim.
- Ah, padre. Você sequer suspeitou?
- CALADO DEMÔNIO!
Outra rajada de água-benta. Eu já
não tinha forças para segurar a bíblia ou a cruz. Minhas pernas estavam bambas
e eu me sentia sem nenhuma gota de sangue no corpo. Esse é o sentimento de
quanto descobrem um de nossos segredos.
- Calma, calma. Não há motivos para
tanto, padre. - disse o velho que já não usava mais a voz do meu pai - Não
fique triste pois seu aprendiz não vai ver sua putinha vampira em um bom tempo.
E com um sorriso insano ele disse:
- Carolina LeBion está morta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário