sábado, 6 de junho de 2015

Ver029



Minha expressão fazia o trabalho das palavras que não vinham. Na teoria é bem simples: um exorcismo nunca é performado sozinho. A carga de energia despendida pelo padre principal é altíssima, o que pode causar danos físicos. Por isso sempre há um diácono que o ajuda com as palavras e orações que são ditas em ordem correta, como uma coreografia metodicamente ensaiada. Em poucas vezes o diácono faz algo além de dar suporte ao padre titular do exorcismo, entretanto, há registros de demônios que só retornaram ao inferno sob comando do auxiliar.

E eu? Eu não estava minimamente preparado para isso, sequer tinha lido toda a bíblia especial que estava na maleta que eu agora segurava. Aprendi do jeito mais difícil que era impossível pensar em Carol e na bíblia ao mesmo tempo. Não era uma decisão difícil escolher o meu foco de atenção.

O calor da tarde permanecia, mas agora era como se a umidade pesasse sobre meus ombros. Eu sabia, teoricamente, da responsabilidade que seria estar ao lado de Victor na hora do ritual, mas era não fazer idéia do que isso seria na prática que me deixava inquieto. Ele não me ouvia, ou escolhia não ouvir. Seguia, passos largos, em direção ao balcão para pagar a cerveja que agora pesava duas toneladas em meu estômago. Tentei acompanha-lo e, ao ver que ele não pararia pelas minhas palavras, minha mão foi ao seu ombro e fez com que ele se virasse.

- Espera! Acho que já você está adiantando um pouco as coisas. - agora que tinha sua atenção eu tentava argumentar - Veja o que o Júlio fez hoje, tenho certeza que...
- Que ele é um ótimo rastreador e nada mais. Toda a idéia de trazer vocês para essa caçada era analisar os pontos forte se fracos de cada um. Eu observei vocês, peguei informações com seus protetores e, eu já faço isso há algum tempo. Não estava completamente certo de que Júlio nos acharia a encontrar o que quer que seja que estamos procurando, mas era um palpite que valia a pena apostar. Com você não é diferente. 

Seu rosto refletia a calma de quem tem plena confiança em suas palavras. Lembrei da minha conversa com Catharina mais cedo, quando eu resolvi vir para cá sem ela. Se eu pretendia descobrir o que ou não poderia fazer, desistir dos obstáculos que aparecesses por insegurança não seria de muita serventia. Catharina seria contra, me protegeria. Mas Victor fazia exatamente o oposto, me empurrava em direção ao perigo.

- Você mandou um berne errante de volta para o Inferno, e antes disso lutou contra uma Aaba. Sem nenhum treinamento, Pablo. Você escapou com vida do ataque de um upyr sem nenhum dano maior que um par de cicatrizes discretas. 

Ele apontou para a saudade que Carol havia deixado em mim. E eu discordei mentalmente, não eram discretas elas eram enormes. As cicatrizes eram do tamanho da falta que ela fazia. Era o sétimo dia sem notícias dela. Sem precisar de nenhum comando meus dedos tocaram a parte lacerada que parecia gelada, gritando pelo toque quente dos lábios dela que haviam estado ali uma eternidade atrás. 

Uma coruja se manifestou em algum lugar e me trouxe de volta.

Victor já estava acertando a conta da cerveja que agora revirava no meu estômago. Cumprimentou Fábio que acenou para mim da caixa registradora. Respondi o aceno sem nem imaginar que tanto tempo depois aquele atendente de bar seria o mais próximo de um amigo que eu teria.

Quando voltamos para a mesa todos já estavam de pé, exceto Vinicius. Nem eu nem Victor dissemos uma palavra sobre a nossa conversa, mas Gabriela me olhou de um jeito tão piedoso quando voltei que desconfiei que ela tivesse ouvido algo. Senti uma onde de compaixão tão forte vinda dela que poderia comparar à um abraço mental. Ou espiritual, depende da sua interpretação.

O que quer que fosse, não me fez bem. Me senti invadido por aquilo e procurei me desvencilhar daqueles dedos invisíveis que tentavam se fechar em mim. Quebrar o contato visual com Gabriela ajudou, deixei de sentir as ondas de energia dela quase no mesmo momento em que ofereci ajuda a Vinicius. Desta vez ele negou e usou a velha mesa de madeira como apoio e, não sem esforço, conseguiu se erguer. A vezes precisamos levantar sozinho e ficar sobre nossas pernas, estando elas boas ou não.

Victor aprovou meu colega com um discreto movimento de cabeça. Quando todos estávamos prontos para ir, eu o vi conversando algo com Júlio que eu não consegui ouvir. Caminhamos até uma praça genérica que marcava a bifurcação entre a rua do bar e a da suposta morada de nosso alvo. Nesse ponto Victor parou e sentou num dos velhos bancos de concreto. Ele não precisou falar para fazermos o mesmo, quando Vinicius nos alcançou ele começou a falar:

- Acredito que este seja o primeiro exorcismo de vocês, então é essencial que alguns pontos fiquem claros para que todos saiamos inteiros dessa situação. À partir de agora somos um organismo só, precisamos manter todas as partes da engrenagem funcionando minuciosa e perfeitamente para que tenhamos sucesso. Todos entenderam?

Gabriela fez menção de uma pergunta mas ele a calou com um gesto e continuou.

- Um exorcismo é um ritual simples na teoria, mas imensamente complicado na prática. São muitas variáveis em jogo e nunca ha um padrão, cada ritual é um ritual. Faço a expulsão de demônios ha não menos que 18 anos e nunca consegui ficar tranquilo antes de faze-lo. - apesar de querer fazer o mesmo que Gabriela, me contive - Cada um de vocês ganhou uma bíblia que veio na maleta destinada aos jovens sacerdos, foi aconselhado que vocês a lessem e eu sei que não leram. Mas tudo bem - pensou consigo -, eu também não li a minha na época. Então deixe-me explicar isso para vocês, o livro que vocês tem em suas malas não é um exemplar desses que os civis encontram em barraquinhas de qualquer paróquia ou livrarias religiosas. Em meio a todos os livros comuns à todas as edições, o Vaticano nos fornece um numero contado de bíblias que contêm o Rituale Romanum, um livro escrito no século XVII onde se encontram todos os rituais ministráveis por um padre.
- Entre eles o exorcismo.

Júlio olhava para frente quando quebrou o silencio que Victor não pediu, como se estivesse em transe. Ele olhava para a casa amarela no fim da rua. O padre pareceu ignorá-lo e seguiu:

- Entre eles o exorcismo, sim. E é ele que vamos ministrar. Sim, eu digo “vamos” porque a primeira lição que vocês precisam aprender sobre essa liturgia é: nunca a façam sozinhos. - fez questão de frisar esta instrução com pausas após cada palavra - O demônio, seja qual for…ou quais forem, que estiverem em posse da pessoa em questão farão de tudo para minar sua força física e psíquica. Estes monstros têm força sobre-humana, como nosso amigo manco aqui pode atestar e só este alerta já se faria necessário para não tentar o bancar o herói sozinho. É preciso emboscá-los. Fazer uma armadilha e prendê-los numa cama ou numa cadeira. Aconselho que usem cintos sempre consigo, eles podem ser úteis. Mas isto não é o mais importante. Depois de preso vêm a parte difícil.

Pausa. Não durou mais que o tempo de uma expiração.

- Fé. - ele disse por fim - É preciso que você tenham uma fé inabalável. Esta é a nossa maior força contra esses filhos da puta. Seus anjos da guarda provavelmente diriam “Fé em Deus” ou seja lá como é que eles chamam esse cara. O meu me disse isso. - um riso irônico escapou - Mas vou dizer para vocês, garotos foda-se Deus. Estou no ramo há quase vinte anos e todos os meus colegas que dependeram da resposta Dele para se salvar já não estão mais aqui para contar a história. Tenham fé no que quiserem, mas escolham bem. Aprendi do modo mais difícil que o nosso querido criador só ouve quando quer, e por isso eu digo: acreditem no que quiserem. Mas escolham bem, escolham algo no qual vocês acreditem acima de qualquer coisa porque é aí, na sua confiança que eles atacam. Com mentiras, injúrias e muitas outras artimanhas eles vão fazer vocês desistirem de si mesmos. Se agarrem ao que vocês acreditam, senão eles vão ganhar. Agora vamos pegar esse miserável.



+++

Esperaríamos anoitecer, Júlio sempre alerta a qualquer sinal de mudança do nosso alvo. Mas a casa amarela que carregava o número 79 pintado à tinta azul-turquesa em sua fachada não dava dúvida nem a alguém com as habilidades de rastreador reduzidas como eu. Ele estava lá dentro.

Quando nos aproximamos, ainda com o sol no céu, todos tivemos novamente a sensação de mal-estar que nos arremeteu mais cedo, só que agora mais contida, como se estivesse adormecida ou pelo menos dispersa. Apesar de diluída, a energia negativa era expelida da casa como se fosse pus em seus poros. Para qualquer passante que não tivesse nossa predisposição para sentir espectros de energia, o número 79 da rua Paulo VI poderia ser apenas uma casa abandonada com tábuas nas janelas e pintura maltratada, mas nós, sacerdos em sua primeira missão, sabíamos que ali era a casa do Demônio.

O plano era não parecia complicado: Vinicius, que já estava com piores condições físicas, seria a nossa isca. Não sem muito protestar, é verdade, ele aceitou. Entraria sozinho na casa e atrairia a atenção do possuído o bastante para sentirmos em que lugar da casa ele estava. Eu, Gabriela e Victor precisaríamos ser rápidos, precisaríamos alcançar Vinicius antes do infernal. Júlio ficaria como reforço. Próximo à porta, nos alertando da posição do inimigo se algo desse errado.

Nosso objetivo era prender o possuído, numa cadeira ou numa cama, não importava. Victor nos dissera que o ritual deveria ser feito com o alvo imóvel. Uma vez tendo pego ele, seria tarefa de todos nós, exceto Vinicius, prendê-lo.

Lembro de ter olhado o relógio antes de finalmente começarmos a missão, ele marcava 18:02h. Me parecia ser muito mais tarde, a rua era tão escura e fria que eu precisei olhar para cima e ver o sol se despedindo para me convencer que ainda não era noite. 

Nos reunimos, Victor deu as últimas instruções e repassou a tarefa de cada um no plano. Checamos nossas maletas e, antes de fechá-las, fomos orientados a usarmos o terço em punho já quando entramos na casa. Num gesto que não foi pensado, enrolei o rosário branco na minha mão esquerda, dando a volta no meu dedo do meio. Todos os outros fizeram o mesmo, mas na outra mão. Victor me olhou e disse:

- Sabe, por muitos séculos não foram aceitos padres canhotos pela igreja. Era sinal de uma inclinação forte para o lado do Inimigo. O lado esquerdo, o lado sinistro.

Ele riu um riso forçado, sem vontade e se pôs a olhar a casa amarela. Me perguntei se Carol também seria canhota. Percebi que nunca tinha reparado e decidi que essa seria uma das primeiras coisas que prestaria atenção quando a visse novamente.

SE a visse novamente.

Passamos pelo portão de grades enferrujadas que um dia pareciam ter sido cinzas. Nós três ficaríamos no jardim, Vinicius entraria e, logo após dele, Júlio. Senti meu amigo mais nervoso a cada passo que mancava, mas não precisei usar nenhuma habilidade especial para isso. Vinicius foi o primeiro a entrar, ele precisou que Júlio o ajudasse a quebrar a viga de madeira que servia de trava na porta, como aquelas toras que eram postas na horizontal em frente às portas dos castelos medievais. Ou uma versão podre e fétida disso.

Quando eles entraram, uma lufada de vento veio em nossa direção, não de fora, mas de dentro da casa. O vento gemia, se lamentava como que nos alertando a sair dali. A casa era grande em altura, tinha três andares. Ele poderia estar em qualquer lugar, talvez até esperando por nós. A tontura voltou sem aviso e trouxe consigo um latejamento desagradável na nuca. Gabriela parecia sentir o mesmo. Victor, entre nós dois, focava seus olhos de general na escuridão da casa por onde os dois sumiam.

- Ei! Eu voltei! Cade você?! - Vinicius gritava do escuro, não se ouvia sinal algum de Júlio.

Os gritos foram repetidos algumas vezes até que silenciaram, melhor. Foram silenciados por um grito maior. Vinha de cima, do segundo ou terceiro andar. Horrível, como cordas vocais se rompendo num grave que ia ser prolongando até virar agudo.

Minha espinha gelou, todo o resto do meu corpo também. A única parte que se movia era minha cabeça, que agora olhava para cima procurando a origem daquele barulho. Gabriela também olhava para os andares superiores em vão. Victor, por sua vez, olhava para baixo, para sua mão direita especificamente. O terço, que era negro, agora brilhava, num fenômeno parecido com o que houve com meu antigo crucifixo quando Máira em nosso primeiro embate.

Na minha mão canhota, a mesma de Carol, meu terço também brilhava e pulsava. Fechei a mão sobre ele e imaginei que aquilo seria a mão dela na minha, me guiando e protegendo. E eu percebi que já tinha escolhido aonde minha fé estava.
 

Victor entrou, seguido por Gabriela. Por fim eu, guiado pela mão de Carol, entrei na escuridão atrás de um demônio. E em algum lugar uma coruja se manifestou outra vez.  

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