“A noite foi bastante
interessante. Fiquei até quase fecharem o bar e a música parar, só quando Máira
resolveu chamar o garçom Lucas para sentar a nossa mesa que percebi que era
hora de ir embora. Bia havia saído horas antes com o homem bonito depois de passar
algum tempo em sua mesa, então entendi que eu poderia atrapalhar a jogada da
minha amiga se continuasse ali, e além disso, passava das três e eu queria
mesmo evitar a correria da madrugada anterior na volta para casa. Resolvi
aproveitar a madrugada gelada e ir andando, apesar da relativa distância e,
durante o caminho, pude digerir as coisas que Máira havia me dito. O que
poderia ser aquele plano que Lucas estava pensando? E quem seria seu
companheiro nessa história toda? Eu já estava morando com ele há muito tempo,
devia saber se houvesse mais alguém tão próximo assim.
Do jardim, pude ver
que a luz de nossa sala estava acesa, sinal de que Lucas não tinha saído, ou
que Beatriz tinha voltado antes de mim. Independente de quem fosse, a
curiosidade me atiçava e seria bom ter alguém pra prolongar o papo que comecei
na Vogue.
Ao subir as escadas
para a sala, o encontrei encaixotando e encapando os artigos de decoração da
nossa sala. Lucas estava de bom humor, muito diferente de como o tinha visto na
madrugada anterior, ainda bem. Usava um pijama de seda preto, que indicava a
sua intenção de ficar em casa o resto da noite.
- Carolina, que
surpresa! - checou o relógio e disse irônico - Chegou cedo hoje. A noite não
estava boa?
- Acho que estou um
pouco cansada de ontem ainda.
- Justo. Cheguei a
pensar que você tinha fugido de mim. - brincou - De qualquer jeito, é ótimo que
você esteja aqui, eu tenho novidades. Pode dar adeus à essa espelunca. Nós
vamos sair daqui.
Não é que eu morresse
de amores pelo nosso casarão no Catete, mas fui pega de surpresa, não achei que
ele encontraria um lugar tão rapidamente. Lucas era exigente e criterioso
demais e ainda mais no Rio de Janeiro nos anos 50, não imaginei que algo
chamasse sua atenção tão cedo.
- Beatriz também ficou
surpresa quando eu contei.
- Ah, então ela já
chegou? - perguntei tirando o casaco e me sentando na poltrona.
- Ela chegou mais ou
menos uma hora atrás. Disse que você a incentivou a caçar a primeira presa
sozinha hoje. Apesar de ter chegado com a gola do vestido ainda suja de sangue,
ela está seguindo os seus passos. Com certeza vai ficar bem, mas imagino que
esteja cansada por decorrência do esforço. É até bom que ela já tenha subido,
assim podermos conversar à sós.
- Você tem certeza que
quer conversar sobre a mudança às três e meia da manhã?
- Não, Carolina. -
Lucas deu um doce riso debochado - Veja, não existe discussão acerca
da mudança. Eu já determinei quando e para onde ela vai acontecer. O que vamos
conversar agora é outro assunto, temo que mais urgente ainda.
Conforme ele se
aproximava de mim, o robe de seda em seu torso abria com o seu caminhar e eu
percebi rapidamente que conversar não era mais o que eu queria fazer.
- Quero falar sobre
como pode ser perigoso para você sair pra se divertir com outros, digamos...
segmentos o plano inferior.
- Você está me
espionando? - eu disse, mordendo os lábios.
- Como você pode dizer
isso? - se mantendo sério e focado - Passei a noite inteira atrás de um novo
lar para nós. Você sabe como é difícil fazer corretores imobiliários
trabalharem a noite? Como poderia espionar você se cruzei três cidades dedicado
a encontrar o melhor lugar para vivermos? Eu só quero dizer para você o mesmo
que contei à Beatriz: eu não acho que seja prudente para a segurança de nossa
família que vocês espalhem nosso segredo tanto assim.
Ele sentou na mesa
baixa que ficava de frente para a poltrona, bem próximo a mim. Próximo o
bastante para que eu sentisse seu perfume e que ele fizesse todo o meu corpo
formigasse de vontade. Quando pensei em agarrar robe e fazer força para
tirá-lo, Lucas, como se previsse minhas intenções, levantou da mesa e pôs dois
candelabros dourados numa caixa.
- Você está com medo
de mim? – perguntei lasciva.
- Medo? Não, minha
doce Carolina. Não se trata de medo, mas de cautela. Se você e Beatriz nos
pusessem em risco, eu seria obrigado a agir. E eu odiaria agir neste caso.
- Isso é uma ameaça? -
a distância ajudava a clarear os pensamentos e perceber as entrelinhas onde
Lucas escondia suas intenções.
- Um conselho. Um que
eu acredito que você seja inteligente o bastante para seguir. - ele se selou a
caixa e fechou os botões de seu pijama - Fico feliz em ver que você e Beatriz
estejam se dando tão bem. Não gozo do mesmo tratamento, acho que ela ainda não
superou aquilo tudo de eu ter matado seus irmãos, mas nada que o tempo não
cure, certo? Peço que passe o nosso combinado à ela também. Agora vamos nos
recolher, acredito que você tenha muitas coisas para empacotar, vamos nos mudar
em dois dias, afinal.
Me pegando pela
cintura, ele me deu um beijo. Lucas não era aquele tipo que é só charme e
nenhuma ação. Ele sabia o que fazer e quando fazer. O beijo foi demorado e me
deixou sem ar, mas parecia que respirar não era importante. Quando acabou, eu
estava ofegante e ele me deu uma mordida leve exatamente no mesmo lugar onde
havia me tomado tanto tempo atrás. Sussurrou para mim ainda antes de ir:
- À propósito,
acredito que você vá gostar na nossa nova casa. Fica na Urca. Agora você vai
precisar de menos tempo para chegar na sua querida boate.
Ainda extasiada, Lucas
já devia estar no meio do corredor quando compreendi suas palavras. Ele tinha
sim nos seguido, ou mandado alguém nos seguir já que de fato estava
procurando nossa nova casa. Talvez seu bom humor e segurança viesse de daí,
agora ele sabia onde estávamos, com quem estávamos e o que estávamos
fazendo lá. De súbito, um sentimento de que eu era só uma marionete me
acometeu, e se ele estivesse me manipulando esse tempo todo? O que Máira havia
me dito sobre aquela história misteriosa de Lucas ainda ecoava na minha cabeça
e me fez lembrar de como ele estava furioso no dia que cheguei tarde em
casa e indiretamente frustrei o que ele havia planejado.
O que era só
curiosidade passava a tomar contornos de algo mais sério.
Não tenho a
necessidade de dormir, mas acredito que mesmo que tivesse, não dormiria naquela
noite. Meus pensamentos voavam a mil por hora, eu criava e destruía estratégias
repetidamente afim de encontrar a melhor solução para entender o que Lucas
estava fazendo por baixo dos panos. Todas as minhas tentativas pareciam conter
alguma falha fatal e eu percebi, quando o sol já se mostrava no céu, que
precisaria saber mais sobre ele antes que soubesse alguma coisa sobre suas
ideias. Eu não sabia nada sobre o seu passado, o que havia feito para chegar
até ali, mesmo depois de tanto tempo de convívio íntimo. Entretanto, não
poderia me precipitar, qualquer ansiedade poderia ser fatal, Lucas já estava me
ameaçando veladamente e agora não custaria muito para que suas ameaças se
vertessem em ações. No escuro do meu caixão, a única luz que eu encontrei foi a
do conhecimento. Eu estudaria sobre ele, se Lucas era mesmo tão infame quanto
Máira dissera, procurando nos lugares certos eu poderia encontrar informações.
A noite seguinte se
mostrou mais quente, mas trouxe consigo uma chuva feroz e barulhenta. Levantei
por volta das 19h e comecei a separar meus pertences para a mudança. Depois que
organizei a maior parte do meu armário e dos meus pertences, passei pelo quarto
de Beatriz para perguntar como havia sido a noite anterior, mas ela parecia
estar em seu caixão ainda. Então, segui até o final do corredor, afim de buscar
na nossa biblioteca algum livro que pudesse pelo menos me dar alguma pista de
por onde começar minha pesquisa sobre Lucas. Meu objetivo, entretanto, foi
impedido pela presença do próprio em frente à nossa estante se perguntando que
livro escolheria agora. A estante que tínhamos era enorme e cobria um lado
inteiro da parede de nossa sala, com cinco andares de livros entre raros,
velhos, conservados e novos. Ele notou a minha presença sem precisar me ver.
- Só agora foi que eu
terminei as aventuras de Sherlock Holmes, uma pena não ter lido a tempo de
contar para o velho Arthur o que eu achei. Lembra de quando nós passamos uma
semana na casa dele em Sussex?
- Lembro. Eu terminei
os livros a tempo, enviei uma carta para ele agradecendo sobre “O Vampiro de
Sussex”, e ele respondeu dizendo que tinha certeza que pegaríamos a referência.
Acho que ainda tenho a carta dele em algum lugar, se você quiser ler.
- Não, vamos deixar o
doutor descansar em paz. Pronto - disse ele se erguendo na ponta dos pés para
alcançar um livro no quarto andar da prateleira - Vou ler um pouco desse tal
Lovecraft agora, estão falando muito dele lá na América pelo que eu soube. E
então, tudo pronto para a mudança?
Lucas disse isso se
virando para mim. Apesar do clima ainda não ter voltado ao normal no Rio de
Janeiro ele estava sem camisa, e quando virou, pude ve-la nitidamente. Seu
tronco sem camisa sempre me atraiu, não tenho pudor em falar isso, mas depois
do impacto inicial era sempre aquela cicatriz que saltava aos meus olhos. Nós,
vampiros, não temos marcas de ferimento, nosso poder de regeneração é forte o
suficiente para cicatrizar em tempo acelerado quaisquer machucados abertos que
possamos ter. Aquela cicatriz no peito esquerdo dele, no entanto, me intrigava.
Era profunda, como se tivessem tentado enfiar alguma coisa ali e a pele ao
redor era marcada por queloides repuxadas que formavam um pequeno sol
defeituoso irradiando de seu peito. Percebendo o foco do meu olhar, ele disse
lascivo:
- Quer tocar nela?
Eu queria. Poderia
dizer que minha entrega ao desejo naquele dia foi uma estratégia para
conseguir alguma informação, mas estaria mentindo. Desabotoei um pouco
minha blusa, deixando à mostra o que interessava e fui em sua direção. Enquanto
ele beijava meu pescoço eu me focava na cicatriz com a mão que estava livre.
Quando pressionei, parecia haver um buraco ali, como e os ossos de sua costela
também refletissem o buraco que não cicatrizou bem na pele. Quase instantânea
ao meu toque foi a sua reação de dor, a cicatriz ainda lhe machucava.
Quando terminamos,
estávamos sofá que ficava em frente à nossa biblioteca. Sentada em seu colo, eu
brincava com os cabelos do seu peito enquanto ele estava entretido com um livro
chamado “Nas Montanhas da Loucura”. Meus dedos encontraram a marca em forma de
sol e perguntei, com a casualidade de quem oferece um café, qual era a origem
dela. Ele respirou fundo e fechou o livro antes de responder:
- Isso já foi há muito
tempo. Essa cicatriz é um dos motivos de termos nos conhecido. Fui imprudente
numa atividade que fiz e quase fui emboscado, os padres me cercaram…três ou
quatro, não lembro ao certo. Dei cabo da maioria deles, mas um me pegou de
surpresa com uma daquelas estacas. Consegui feri-lo bastante com um golpe quase
ao mesmo tempo e fugi para a França.
- O que me deixa
curiosa é o fato dela ainda estar aí depois de tanto tempo. Quer dizer - com as
minhas unhas fiz três rasgos em seu ombro que em questão de segundos se
fecharam - por que ela não reagiram assim?
Visivelmente
desconfortável, ele empurrou o meu quadril para que eu
levantasse. Depois guardou seu o livro de novo na prateleira alta e
se apoiou na lareira que nunca precisamos ligar.
- Este ferimento foi
causado por uma arma sagrada, por isso sua cura foi tão complicada. Viajei num
navio para a Europa no compartimento de cargas me alimentando de ratos e pequenos
animais dos tripulantes. Achei que aquela seria minha última viagem.
- Mas por que se
aventurar na Europa mesmo estando tão ferido?
- Eu precisava tratar
a ferida e soube que Buer estava pelos campos da Irlanda naquela época. Só ele
poderia fazer isso.
- Quem é Buer? -
perguntei um pouco ansiosa.
E acho que o momento
tinha acabado porque Lucas só ajeitou o cabelo e sorriu de lado dizendo que era
uma informação com a qual eu não precisava me preocupar. Ele perguntou se toda
a nossa atividade não havia me deixado com sede e após a minha negativa, ele
lamentou ir caçar sozinho e foi se arrumar em seu quarto.
Eu menti, tudo o que
fizemos me deixou, sim, com sede. Isso era algo recorrente comigo, sexo e
sangue vinham sempre juntos. Aproveitei que Lucas tinha saído para examinar com
cuidado os livros da nossa biblioteca, os mais antigos primeiro. Achei sim
algumas coisas que tangenciavam o ocultismo, muito de William Blake e até mesmo
um compilado de textos apócrifos, mas nada disso me ajudava. Eu insisti, correndo
os dedos pela estante, encontrei um livro com a lombada arrancada e a capa
descascando. Parecia ter sido encadernado com couro, mas agora ele estava
endurecido e queimado. Ao abri-lo vi uma cruz invertida mostrava que talvez
aquilo fosse promissor, só que as páginas seguintes falaram comigo numa língua
que eu não compreendia, minha primeira impressão era que fosse russo, ou talvez
grego.
Devolvi o livro sem
nome para a prateleira no seu devido lugar, para que não houvesse suspeitas, e
comecei da outra extremidade, a botar nossos livros em caixas. Beatriz apareceu
algum tempo depois e, depois de me contar o que tinha feito com seu parceiro da
noite anterior, me ajudou com a tarefa. Nesse meio tempo Lucas saiu de seu
quarto usando um belo terno azul marinho com um guarda-chuva nas mãos e
perguntou mais uma vez se não estávamos com vontade de acompanha-lo. Assim que
ele partiu, disse à Beatriz que precisava pegar algo no meu quarto e escondi o
livro da cruz invertida sobre a blusa.
Chegando no meu quarto,
passei novamente as páginas amareladas e endurecidas na intenção de que pelo
menos as figuras fizessem algum sentido. Consegui identificar criaturas de
diferentes formas representadas em desenhos sem perspectiva ou proporção, o que
me fez pensar naquelas pinturas sacras medievais que a gente vê em alguns
museus, mesmo antes de transformada sempre odiei aquelas coisas. Não consegui
extrair nada de seu conteúdo textual, mas uma análise mais cuidadosa das
imagens me fez inferir que aquele era um livro de estudos. Era possível
perceber esquemas gráficos ilustrados por partes de corpos decepadas de seu
todo, como se precisassem ser evidenciadas por algum motivo. Uma das sessões
mostrava o desenho de um corpo de vampiro e todos os seus pontos vulneráveis ao
lado de uma ilustração ampliada de nossa arcada. Percebi que não conseguiria
tirar muito mais daquele livro sozinha, guardei-o na minha bolsa e desci antes
que Bia pensasse alguma coisa.
Enquanto terminava de
separar os outros livros (Beatriz já tinha feito dois lances da estante),
tentei pensar em uma maneira de entrar em contato com Máira para ver se ela
podia me ajudar com a descoberta. Não tinha seu endereço exato, então nem uma
carta eu poderia enviar. E já estava começando a sentir a garganta seca queimar.
- Falta só uma
prateleira. Você acha que consegue terminar sem mim, Bia? Vou subir e me
arrumar para caçar um pouco.
- Ah, claro. Nossa,
você ainda está com animo para sair hoje? Eu ainda estou acabada de ontem.
- Eu sei como é. - eu
disse nostálgica - É a primeira vez que seu corpo recebe sangue estranho e por
isso demora a processa-lo, daí o seu cansaço. Acontece com todo mundo, na minha
primeira vez eu abusei, peguei uma mulher que tinha três vezes o meu tamanho e
deixei ela sem nenhuma gota no corpo. Hibernei por dias. Mas você vai se
adaptando, daqui há alguns meses nem vai mais sentir.
- Tomara, mas hoje vou
deixar você sem companhia mesmo. Eu termino aqui, mas já que você vai subir se
incomoda de levar meus bonsais pro meu quarto? Vou bota-los numa caixinha
especial.
Bia tinha aprendido
com os avós a cultivar bonsais e botou três deles em cima da nossa mesa de
centro, acho que era pra dar harmonia na casa ou algo assim. Eu até achava os
bonsais bonitos e concordava que era legal ter um pouco de vida na casa. Fui
até os vasinhos de onde brotavam as pequenas árvores. Ao lado deles, estava o
jornal que seria entregue às bancas na próxima manhã. Minha surpresa não foi o
jornal em si, Lucas continuava com o hábito que trouxe da Europa conosco, mas
sua manchete.
“SUICÍDIO OCORRIDO NA
MANHÃ DE ONTEM CHOCA MORADORES DE PRÉDIO DO LEME” - diziam as letras garrafais.
Mais abaixo ainda podia se ler em uma tipografia mais modesta - “Garçom de
tradicional boate da Zona Sul se atirou do quarto andar do edifício nas
primeiras horas desta manhã sem motivo aparente. Entrevistamos a moradora do
apartamento. Mais nas páginas 06 e 07.
E na foto que
ilustrava a matéria estava Máira numa camisola de renda bastante justa e
decotada trazendo uma expressão de preocupação e transtorno no rosto.
Aposto que o jornal
vai vender bastante amanhã.
Nas páginas indicadas
na chamada encontravam-se mais detalhes do caso, entre eles o endereço do
apartamento. Eu estava pensando em retornar ao puteiro onde conheci Máira ou
até a Confeitaria Colombo naquela noite, mas aquela reportagem me ajudou
bastante em saber onde ir.
- Alguma coisa
interessante no jornal? - Bia tinha acabado de guardar os livros e agora me
olhava interessada. Eu tinha esquecido que ela estava na sala.
- Vão fechar a rua da
praia para uma passeata no fim de semana de novo, acredita? Odeio quando eles
fazem isso, muito tumulto. - minha mentira soou convincente pois havia
acontecido algo semelhante no mês anterior - Bom, melhor eu tomar um banho e
trocar essa roupa.
Peguei os bonsais e o
jornal.
- Vou deixa-los no seu
quarto. Até mais tarde, Bia.
Na banheira, eu ainda
passei as páginas do livro com o crucifixo invertido uma última vez afim se
poderia levar alguma coisa para Máira. Nada. Me vesti e peguei um taxi para o
Leme. Lembro do taxista ter dito algumas gracinhas, o que me irritou. Mas
precisava dele até que chegássemos no endereço mostrado no jornal.
Depois, no entanto,
não precisava mais.
Existe uma realização
pessoal um tanto quanto cruel no momento em que você percebe ser capaz de secar
uma presa até quase os ossos sem desperdiçar uma só gota. Minha blusa branca e
minha saia pretas saíram imaculados do taxi que eu havia pedido para parar num
beco, logo atrás do prédio de Máira.
Era um prédio novo
para época, com seis andares e uma arquitetura moderna bem chamativa. As
varandas eram largas e, especificamente a do quarto andar mostrava luzes acesas
no interior do apartamento. Ela estava em casa. Subi o lance curto de escadas
que levava ate a portaria, que às 22h, ainda mantinha seus portões abertos. O
porteiro acordou com um sobressalto quando eu chamei seu nome e se benzeu por
reflexo.
- Meu Deus! Dona a
senhora me assustou.
- Não sou senhora
ainda. - disse friamente - E acredito que Deus tenha um pouco mais de barba que
eu.
O homem percebeu que
eu tinha ficado incomodada e seguiu tentando ser profissional.
- Perdão, senhorita.
Como posso ajuda-la?
- Vim visitar minha
amiga. O nome dela é Máira e ela mora no quatrocentos e d…. - deixei a frase no
meio por ter medo de ter cometido uma gafe grave. O jornal dizia o endereço,
mas mantinha Máira como testemunha anônima. Talvez ela tivesse dado outro nome
ao se instar ali e...
- Quatrocentos e dois.
Uma tragédia o que aconteceu, você sabe que eu vi o corpo caindo com tudo aqui
na calçada? Tem cada pessoa maluca hoje em dia…bom vou interfonar para ela
aqui. Qual é o nome da senhora?
- Carolina. Carolina
LeBion.
Ele discou um número e
apertou um botão vermelho no aparelho que ficava em sua mesa. A voz de Máira
soou do outro lado.
- Oi, dona Máira. Tem
uma senhorita Carolina aqui, posso mandar subir?
- Carolina… Carolina…
- ela parecia estar pensando.
- LeBion - eu o
lembrei apenas com os lábios e sem nenhuma voz.
- Isso, Carolina LeBion.
- Aaaah, é uma ruiva?
- Isso mesmo.
- Não, odeio essazinha
aí.
Ele e eu nos olhamos
surpresos.
- Brincadeira, pode
subir sim. - ela riu como se estivesse ali vendo nossa expressão. - Mas você
deveria ter cuidado com essa aí, Jonas. Ela morde.
Ele sorriu e fez sinal
para eu subir sem saber que, daquela vez, Máira tinha dito a verdade.”
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