quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Ver010



A conversa foi longa. Catharina me disse que, após a ultima vez que nos falamos na casa dela, havia estado no plano superior resolvendo o que deveria fazer no decorrer de sua missão. 

- Fui até o conselho da Ordem para que me guiassem depois que você decidiu que não queria mais se ordenar. Foi quando Joanna, uma das mais experientes Fravashi me disse minha missão nem tinha começado e eu já havia falhado...ela me contou o que aconteceu. Pablo, - Catharina agora tinha os olhos mareados - peço perdão por tudo isso.
- Catharina, não é por sua causa que meu pai foi morto.
- Sim, foi. Eu trouxe todo esse mal pra sua vida. Se eu tivesse feito meu trabalho direito nada disso teria acontecido. - disse ela com aquele jeito de sempre querer carregar o mundo nas  costas. Quando voltou a falar já estava recomposta e eu via alguma obstinação no seu olhar.

- Quero que você saiba que, mesmo desobedecendo ordens, eu estou empenhada a fazer Malta pagar pelo que fez.
- Malta?
- Sim, o assassino do seu pai.
- Não, Catharina...quem..- ainda era difícil falar - quem fez isso se chamava Lucas.
- Lucas Malta. O desgraçado não fez nem questão de disfarçar os rastros.
- Você conhece ele?!
- Infelizmente, conheci Malta alguns séculos atrás. Ele foi um dos primeiros upyres que eu encontrei aqui no plano intermediário.
- Quer dizer que ele é como aquela menina Carolina?!

Catharina suspirou antes de responder e eu lembro ter percebido alguma tristeza em seu rosto.

- Sim, Pablo. Eles têm muito em comum. Mas não acho necessário falarmos sobre isso agora. Eu vim para te ajudar, não para te lembrar do...enfim do que aconteceu. Você se incomoda de eu ficar alguns dias? Apesar de estarmos em estado de suspensão ainda me sinto responsável por você.

Sei que disse que o que eu mais desejava era continuar na minha rotina de viver dias sem motivo mas Catharina tinha essa coisa de pegar meus demônios e deixá-los longe. Mesmo hoje em dia, meus dias mais alegres tem sido pontuados por visitas dela. 

Disse que adoraria a companhia e quase que em concomitante percebi que a casa estava um lixo e não havia nada para comer. Você começa a reparar mais nas coisas quando passa uns dias morando com um anjo. Claro que ela mentiu falando que não tinha reparado em nada daquilo, Catharina é gentil demais para reclamar de coisas como um depósito de garrafas de cerveja vazias ao pé da poltrona ou um cobertor com restos de salgadinhos. Comecei a arrumar tudo que estava fora do lugar no meu campo de visão quando Catharina disse que cuidava daquilo e sugeriu que eu fosse à rua comprar algo decente para jantarmos mais tarde.

- Mas Catharina, - eu disse relutante - minha opinião quanto ao sacerdócio não mudou, tudo bem?
- Não quero que você pense nisso agora, Pablo. - E me sorriu um sorriso doce.

Troquei de roupa e fui, ainda não tinha conhecido o porteiro novo e nem conheci. Passei por ele e só três quarteirões depois eu percebi que aquela era a primeira vez que eu saía de casa em uma semana.

Copacabana é um bairro com muitos bares de rua e no caminho para o mercado eu passei por alguns deles. Era por volta de duas da tarde, mas já tinha bastante gente com copos na mão. Estava distraído e não reparei um senhorzinho de aspecto humilde que estava num desses botecos até esbarrar nele. Me desculpei e então percebi que ele estava sozinho numa mesa para quatro pessoas.

- Me desculpe, senhor. Eu ando meio distraído mesmo.
- Tudo bem, meu filho…você passou por muita coisa ultimamente

Eu, que estava já passando por ele parei e voltei.

- Perdão?
- É, garoto. Meus olhos têm visto muita coisa por muito tempo. Eu reconheço um homem que precisa de uma cerveja quando vejo um. - e me estendeu a mão - Meu nome é Gustavo, porque você não me ajuda a acabar com essa garrafa aqui, ein?

Eu ia negar, mas ao apertar a mão estendida do velho a idéia me pareceu ótima.

- Com você disse que se chama mesmo?
- Eu não disse. O nome é Pablo.
- Pablo, né? - disse enquanto enchia meu copo - Prazer, Pablo. Sabe o que eu acho? As pessoas pensam demais. 
- E eu acho que o senhor já está aqui no bar ha algum tempo, né?
- Não, é sério. Você já parou pra pensar em quantas coisas as pessoas deixam de fazer, coisas que ela realmente querem fazer digo, só porque pensam demais nas conseqüências? Se você for parar pra ponderar toda e qualquer escolha da sua vida sempre vai achar possibilidades daquilo acabar mal e nunca vai fazer nada. Já imaginou quantos destinos seriam mudados se as pessoas fizessem o que elas realmente têm vontade de fazer?
- Não, senhor. Eu acho que as pessoas sempre fazem o que querem fazer.
- Tem certeza? Você, por exemplo, guri. Sabe o que quer fazer, no entanto está negando seu desejo. Não é verdade?

Não respondi, mas gelei com aquele comentário. Acontece que, nessa semana toda que fiquei isolado em casa eu pensei bastante nas minhas possibilidades. Confesso que o sentimento de vingança não é o mais puro ou nobre, mas era ele que fazia a vontade de começar o treinamento que Catharina havia proposto para mim. Eu queria força, queria poder para me vingar do assassino do meu pai. Não contei isso para ninguém, e estava negando este desejo até para mim mesmo. Ou pelo menos tentando. 

Terminei meu copo. Me despedi e fui caminhando de volta em direção ao mercado. Depois de dar cinco passos ouço Gustavo falar:

- Bela tatuagem no pulso, garoto.

Fingi que não ouvi. Eu não poderia saber ainda, mas tinha acabado de ter um encontro com um Biemo. Um tipo ordinário de demônio que desperta os desejos mundanos dos homens. Não costumam ser muito perigosos, apesar de poderem influenciar bastante uma mente fraca. Esse tipo de criatura consegue enxergar nossas maiores vontades e nos incentivar a seguí-las.

Até hoje não consegui decidir se isso é bom ou não. 

O ponto é que eu saí daquele bar convencido de que sim, eu me ordenaria padre. E também acabaria com a raça daquele filho da puta.


+++

No jantar contei à Catharina que tinha mudado de idéia (mas não contei o motivo). Ela se espantou, mas não contrariou a minha decisão. Ao contrário, se mostrou bem animada. Mal acabou de comer e já começou os preparativos que precisavam ser tomados. Disse que não queria me deixar sozinho, ainda mais agora, mas eu a tinha pego desprevenida ela, e ela teria algum trabalho por causa disso. O relógio estava quase marcando 23h quando ela se despediu de mim com a promessa de que no próximo dia estaria de volta antes mesmo do almoço para começarmos. 

Eu terminei de arrumar a sala e percebi que eu estava bastante cansado. Meu quarto continuava implorando por uma faxina mas eu ignorei e tombei direto na minha cama.


+++

Toc toc.
Toc toc.

Acordei ainda sonolento, mas não levantei.

Toc toc.

Insistem. Olho para o relógio, 2am. Quem estaria batendo na minha porta tão tarde? Finalmente levanto e vou me encaminhando para fora do quarto quando batem mais uma vez e eu percebo que o barulho não vem da porta, mas sim de dentro do quarto.

Ela estava na minha janela. Como a janela estava aberta, sua mão tocava na borda que ela fazia em minha parede e não no vidro. Mesmo depois de tê-la visto, ela tocou duas vezes novamente.

- Vai me convidar para entrar? - Sua voz fazia meu coração acelerar, seus olhos me engoliam. Dessa vez, os cabelos ruivos estavam presos numa trança impecavelmente feita que caía ao lado direito do seu rosto. Usava uma camiseta preta e uma saia cinza que estava quase curta demais para ela. Quase.

Respirei.

- O que você está fazendo aqui?! O que…como você descobriu onde eu moro?!
- Quantas perguntas. Calma, não precisa esconder sua mão, eu não vou te atacar. Não agora. Eu vim para te alertar, quem me disse onde você mora foi Máira. É claro que você lembra dela. Então, vamos ter essa conversa através da janela ou você vai me deixar entrar?
- Vem, entra - eu disse, não foi a decisão mais inteligente mas eu nunca consegui pensar direito perto dela - como se você precisasse da minha permissão, né?

Precisava, mas eu ainda não sabia. Ela só riu fingindo timidez, imitou aquele jeito de dama cumprimentar usando o vestido ironicamente e entrou.

- Sabe, nenhum garoto demorou tanto para me deixar entrar no quarto dele. - ela agora olhava para a bagunça do meu quarto e minha vergonha passou a me incomodar mais que o medo dela.
- Talvez eu seja mais esperto que a maioria.
- Talvez não.
- O que você quer, Carolina? - Eu tentava soar seguro e duro, mas não conseguia.
- É muito fofo você aí bancando o corajoso, sabia disso? Eu poderia passar a noite toda me divertindo com você aí todo nervoso mas vou direto ao ponto. Você não pode seguir com isso, garoto.
- Com o que?
- Essa loucura, que Catharina está te convencendo a fazer. Olha, - e foi a primeira vez na conversa que ela não estava sendo sarcástica ou irônica - eu soube do que aconteceu com seu pai uns dias atrás e eu sei que foi duro. Mas a não ser que você queira que aconteça a mesma coisa com você desista disso, garoto.
- Muito conveniente para você falar isso, upyr.

Ao me ouvir pronunciar este nome ela veio rapidamente até mim, quando notei ela já estava na minha frente. Nariz no meu nariz. Carolina agarrou a minha nuca e foi se aproximando devagar. Parou com os lábios na minha orelha esquerda e disse sussurrando:

- Se eu quisesse, voce já estaria morto agora Pablo.

E me empurrou de volta na minha cama.

- Eu vim aqui avisar você para parar com isso porque existem criaturas fortes, mais fortes que eu ou Máira que já sabem da sua existência e dos seus…dons.
- Como Lucas Malta?

Sem querer, eu a desmontei. Ela, que estava imponente se diminuiu ao ouvir o nome do assassino. Os olhos baixaram e fitaram o chão por segundos breves. Quando retornaram para mim já tinham recobrado a intenção de costume.

- Sim, como ele. O recado está dado, Pablo. Agora faça o que quiser.

 Ela estava firme, mas a sua voz não. Foi se encaminhando de volta para a minha janela e eu que não queria de jeito nenhum a ver indo embora chamei seu nome uma última vez naquela noite.

- Carolina, espera! - ela se deteve - Porque você não acabou comigo naquela noite no Arpoador?
- Bom,- ela falou depois de pensar um pouco - acho que você teve sorte.

Ela sorriu para mim antes de ir e eu desisti de limpar o meu quarto depois disso. 

Ele tinha o perfume dela.




Um comentário:

  1. Nossa
    Parabéns, Douglas.
    Sua história é muito boa. Muito viciante e sedutora. Estou amando esse mundo de anjos e demônios.

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