quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Ver006



A janela grita quando eu a abro com um só puxão. Os poucos metros quadrados do meu apartamento ficaram mais quentes com as lembranças que pus nas últimas páginas. Sinto a chuva que ainda cai molhar a minha pele, também estávamos molhados, eu e ela, naquela noite.

Minha cabeça bateu com força na pedra quando Carolina me derrubou. Não estava treinado para ver seus movimentos, se bem que mesmo após me ordenar, ainda tinha dificuldades de acompanha-la. Ao abrir meus olhos vi Carolina já sobre mim, uma mão no meu pescoço, outra na minha mão cortada. 

Seu toque é difícil de descrever. Frio, com certeza, mas não desconfortável. Minha mão ferida que estava latejante, pareceu se acalmar ao seu sentir a dela. Não havia mais dor. Minha pele gostava da pele dela. 

Ela me olhou, e seus olhos que antes eram profundos e escuros, estavam agora pintados em âmbar, ainda mais envolventes do que antes. Mas, sem dúvida, o que mais me chamava a atenção em seu rosto eram os dentes. Quando ela sorriu para mim ao longe achei ter visto através dos meus óculos já empenados, caninos desproporcionais quase tocando seus lábios inferiores. Agora, com ela tão perto de mim, percebi que tinha visto corretamente.

Com os olhos em mim ela me engolia, e sabia disso. Eu estava sem ação e o pior de tudo é que não me incomodava, na verdade eu estava gostando daquilo. Sentir seu perfume, seus olhos nos meus, seu corpo no meu. Eu estava excitado.

Sua mão esquerda deixou minha garganta quando ela estava convencia de que eu já não ofereceria resistência e foi encontrar a direita junto ao meu pulso. Ela o trouxe para si com tanta velocidade que não senti meu próprio braço se movendo. Num movimento preciso e delicado minha mão estava de frente ao seu rosto, os olhos dela ainda não haviam saído dos meus.

Catharina recuperou as forças a tempo de ver a cena. De onde eu estava, apenas a escutei gritando:

- CAROLINA, NAO!

Ela ouviu, mas ignorou. Sua expressão era de satisfação, como se tivesse conseguido algo que estava esperando por muito tempo. Pela primeira vez se voltou para minha mão que ainda estava aberta. Do corte, que foi profundo, ainda escorria algum sangue, No primeiro momento, ela se encantou com aquele vermelho mas, no espaço de segundos eu vi algo diferente da superioridade que seu rosto irradiava. Ela aproximou minha um pouco mais do rosto e teve certeza de algo. Me olhou como se não pudesse acreditar num fato que lhe contavam.

Ainda hoje eu consigo lembrar da sua voz nos meus ouvidos. Forte, como ela, mas envolvente e sedutora, como ela também. Na maioria das vezes que a ouvi, era cheia de confiança e certo sarcasmo, mas nao naquela vez.

Carolina estava incrédula com algo que via em mim.

- Você…mas não pode ser…Como foi que você…?

As perguntas pareciam mais para si mesma do que para mim. Soltou minha mão ainda perplexa e saiu de cima de mim. Dei um longo suspiro e percebi que não estava respirando bem todo este tempo. E difícil tirar os olhos dela, levantei rápido apesar do corpo dolorido e tentei segui-la. Ela não corria, mas suas passadas, precisas como as de uma bailarina, já davam a ela boa vantagem sobre mim.

Catharina que já tinha levantado segurou meu pulso e me impediu de seguir Carolina. Suas pernas brancas estavam decididas, seu rosto não e, ao despertar Máira, olhou uma última vez para mim perplexa. Foi como se um vento as tivesse levado. Uma batida de coração depois e já não estavam mais ali.

Um tapa me despertou. Pode fugir um pouco da imagem barroca que a maioria dos mortais tem de anjos mas sim, eles têm variações de emoção. Os dedos de Catharina marcaram meu rosto e arrancaram a imagem do rosto daquela menina dos meus pensamentos.

- Inconsequente! Irresponsável! - Seu dedo em riste tremendo a frente do meu rosto - COMO você fez isso?! Faz ideia do perigo que você correu?! Duas, DUAS infernais e você sozinho, sem treinamento, sem armas.

Mostrei a minha faca e ela me fulminou com os olhos.

- É inacreditável a sua sorte! Você escapou duas vezes.
- Talvez meu anjo da guarda seja forte, haha - Tentei descontrair.
- Não vejo a graça, Pablo. Vamos para casa. - Fui em direção a Paula Freitas mas logo Catharina me alertou que não pegaria aquela rua essa noite - Vamos para a MINHA casa. Avise seu pai que você não vai dormir em casa hoje, precisamos cuidar disso.

“Isso” era eu. Só então tomei consciência de que estava com arranhões, sangramentos e feridas em varias partes do corpo. Fiz como ela mandou e liguei pra casa, meu pai já havia voltado da Argentina e estranhou a felicidade que eu passava no telefone ao ouvir a voz dele.

- Então você não vai dormir em casa hoje, né?
- Não, pai. Hoje vou ficar na casa de uma….amiga.
- Aaah, amiga. Sei…olha, juízo ein, filhão.
- Ok, pai. Desligando.

- Pronto - disse para Catharina - Para onde vamos?


+++

Não era grande, mas acho que nunca vi um ambiente tão organizado na vida. Não se via sujeira ou nada fora do lugar. O apartamento, todo em tons de azul, tinha dois cômodos minimalistamente bem decorados. 

Ao chegarmos, ela puxou uma cadeira da pequena mesa de centro e fez sinal para eu sentar. Segui o conselho prontamente, não queria a irritar mais. A beleza de Carolina tinha voltado aos meus pensamentos quando Catharina estalou os dedos em frente aos meus olhos.

- Vamos, tire a camisa!
- Oi?! Como assim?!
- Pablo, precisamos cuidar dos seus machucados.
- Não, pode deixar que eu cuido deles sozinho.
- Do mesmo jeito que você cuidou de Máira e Catharina? Tire. A. Camisa.

Não tive argumentos, tirei. Ela abriu a caixa de curativos branca que tinha trazido e começou a tratar os arranhões. Não queria dar a impressão de que estava ansioso demais, pensando demais, mas precisava de detalhes sobre aquela ruiva. Tentei dizer no tom mais casual possível:

- Então, Máira não estava agindo sozinha né? Que coisa!
- Sim.
- Pois é! E aquela outra menina…como foi mesmo que você chamou ela?
- Carolina. Carolina LeBion.
- Isso, Carolina…vocês se conhecem ou o que?
- Conheci Carolina no inverno de 1883, numa missão que estava cumprindo em Paris.
- 1993, voce quis dizer, né?
- Não, 1885. - Falou com impaciência.
- Bom, mas isso não é possível! Ela teria que ter…
- Cento e vinte e três anos.

Espantado levantei da cadeira. Cento e vinte e três anos?! Ela parecia ser mais nova que eu! Poderia ter parado por ali com as perguntas, mas agora minha curiosidade estava mais sensível que nunca. Catharina percebeu isso, suspirou e disse:

- Pablo, Aabas não são os únicos tipos de demônios por aí. Como eu disse, existe um sem-numero deles e, apesar de poderosos, Aabas são uma das classes que menos causam problemas grandes. O caso de Carolina é diferente. Ela é uma Upyr. Temos sorte de eles não conseguirem resistir a luz do sol, mas de agora em diante vamos precisar de cuidados redobrados durante a noite. Upyres se alimentam de sangue humano, uma mordida daqueles dentes em você e ela nao soltaria até que voce tivesse seco como um graveto.

Pensei nos lábios vermelhos dela tocando minha pele, meu pescoço e isso me deu um estranho prazer. Depois de algum tempo voltei a falar.

- Engraçado, percebeu como as características dos Upyres batem direitinho com a lenda dos vampiros?

Catharina parou com os curativos, respirou fundo e falou.

- Lenda? Não Pablo. Carolina É uma vampira.

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